segunda-feira, 14 de abril de 2014

Conto premiado no Concurso de Literatura Unifor 2013

A redação de Rebeca
Um conto de Noberto Santos

“Você tinha razão, Isabela.” – Foi a primeira coisa que Leonardo pensou assim que viu o jovem casal chegar ao asilo. Logo em seguida seu coração começou a morrer.
Aos oitenta e quatro anos já experimentara pelo menos uma meia dúzia de enfartes, mas nenhum como aquele. Hereditariedade, disseram os médicos. Ainda que tivesse parado de fumar há mais de duas décadas sua herança genética continuava a persegui-lo como um inimigo inexpugnável. O curioso é que ele se arrependia de muitas coisas que fizera ou deixara de fazer na vida; dos cigarros, não. E naquele momento (com a morte lhe segurando a mão), estava decidido a provar se Isabela estava mesmo certa. Sim, antes que os enfermeiros do asilo lhe notassem a respiração agônica e lhe enchessem de remédios, precisava se levantar e caminhar até o casal. Seria fácil, eles conversavam com um grupo de idosos do outro lado do jardim.
Tentou se erguer. – O peso esmagador no peito ordenou que ficasse quietinho. – “Dane-se”, pensou, e jogou o corpo para frente. As pernas tremularam, o jardim girou como carrossel e a grama veio de encontro ao seu rosto. Duas enfermeiras correram para socorrê-lo, assim como o casal que conversava com o grupo de idosos. Quem diria, Deus, acabou dando certo de qualquer jeito.
Quando o elegante homem se afastou da esposa e se abaixou para apoiá-lo, Leonardo ignorou a dor excruciante no peito e lhe agarrou os braços, puxando-o mais para perto. Não havia dúvidas; aqueles eram os mesmos olhos azuis que ele avistara no verão de 1954. “Cristo”, não sabia como explicar, mas eram eles, e não haviam envelhecido um só dia durante todos aqueles anos! “Você tinha razão, Isabela”.
A vista escureceu, e à medida que o barulho nervoso das vozes diminuía em sua volta (como o volume de um rádio sendo abaixado), sua mente viajou no tempo, levando-o novamente até o singelo Colégio dos Salesianos, onde ele e Isabela anunciavam os alunos que haviam se destacado no ano letivo de 1954.
            – Bem, chegou a hora, pessoal – dizia Isabela ao microfone. – A grande vencedora do concurso de melhor redação deste ano é: Rebeca Rosalino! – e a multidão de pais e crianças irrompeu em aplausos.
            A menina se desvencilhou das dezenas de braços que tentavam enlaça-la e subiu ao palco.
            – Parabéns, querida. – Disse Isabela antes de se curvar e receber um beijo na bochecha da sorridente Rebeca. – Sua redação realmente me surpreendeu.
            A menina abraçou o troféu de campeã e desceu os degraus, indo sentar-se perto de um casal acomodado numa das últimas mesas adornadas para o evento. “Que pais privilegiados” – Leonardo pensou na época.
Ao final da festa, ele e Isabela foram conhecer a família de Rebeca.
            – Parabéns – lembra-se de ter dito ao homem, estendendo-lhe a mão. – Vocês têm uma filha genial.
            – Obrigado, professor – a voz carregava um suave sotaque europeu. – Sou Lorenzo, e esta é minha esposa, Constância. Estamos honrados em conhecê-los.
Agora, caído no jardim do asilo, Leonardo sabia que aqueles nunca foram seus nomes verdadeiros. Meu Deus, quantas vidas não viveram? Quantos nomes não criaram?
Após o aperto de mãos, o homem olhou para a esposa (como se já acostumado àquele equívoco corriqueiro), e respondeu a Leonardo, sorrindo:
 – Entretanto, professores, Rebeca não é nossa filha. É nossa neta.
               Neta? Não brinca. Quantos anos eles tinham afinal? – pensou Leonardo. – Trinta? Trinta e cinco? Virou-se para Isabela (que estava tão perplexa quanto ele), e daquela vez foram eles que riram. Lembra-se de não ter aberto mais a boca por já haver esgotado sua taxa de inconveniências, mas gostaria de ter acrescentado que a avó de Rebeca era nada menos que magnífica; pele límpida, bronzeada, e brilhantes olhos amendoados (os mesmos olhos que o encaravam agora por cima dos ombros dos médicos, no jardim do asilo). O avô de Rebeca era uma rocha; queixo másculo e pouquíssimos fios prateados nas têmporas. E que aperto de mão o filho da mãe tinha.
            – Puxa, estamos realmente surpresos. – Confessou Isabela. – Obrigada por me lembrarem do tempo que estou perdendo. – Tentou segurar a mão de Leonardo, mas ele se esquivou, discretamente.       – Não esperem muito, professores – o homem disse, estendendo-lhes um copo de suco de uva. – A vida não espera.
            Urgh! Uma espetada no braço o trazia de volta a 2013. Haviam lhe injetado uma ampola de adrenalina nas veias, era a equipe de médicos tentando reanimá-lo. “Não quer me ver morrer, doutor? Pergunte a esse casal aí atrás do senhor, eles descobriram como viver para sempre”.
Como se lhe ouvisse os pensamentos, o médico se virou para o casal:
– Vocês o conhecem?
– Não, doutor. – Respondeu o homem que ainda carregava os mesmos fios prateados nas têmporas. – Esta é a primeira vez que visitamos o asilo. – Agora ele usava outro sotaque, mas era a mesma voz, firme. Não envelheceram. Deus! – a revelação lhe veio como um raio – Foi a poção. Sim, a poção do padre. De alguma forma ela causara uma inexplicável anomalia aos seus corpos, e agora eles estavam condenados a viver para sempre. Eram imortais.
O círculo de curiosos que se formara em torno da equipe médica fitava-o aturdido. Ele viu as cabeças girarem, girarem, e foi outra vez transportado para a cadeira da roda gigante do tempo. Aquela seria sua última e derradeira viagem. Jamais voltaria. Isabela, Isabela, talvez tenha dito.
Em dezembro de 1954 a professorinha falava empolgada enquanto limpava as grossas lentes dos óculos. “Cadê vocês?”. Na saída da escola, o homem pagou os sorvetes e piscou para a esposa quando viu Isabela dar um beijo gelado no rosto de Leonardo. Rebeca dormia dentro do Buick 1953.
– Então – disse Isabela à mulher –, de certa forma, Rebeca se inspirou em vocês dois para fazer aquela redação, não foi? Engenhosa aquela menina.
            O casal se entreolhou, sorrindo. Aparentemente não sabiam do que Isabela lhes falava, por isso ela continuou, elevando a voz para sobrepujar o barulho dos carros que passavam:
            – A neta de vocês escreveu sobre o amor; certamente influenciada pela literatura estrangeira da biblioteca da escola. Ela iniciou a redação revelando que jamais existiu amor entre um homem e uma mulher semelhante ao que vocês dois ainda hoje compartilham. Disse que ao se conhecerem ficaram perdidamente apaixonados um pelo outro, mas não puderam ficar juntos por causa das suas famílias que se odiavam. Desesperados, vocês acabaram sendo convencidos por um padre a simularem as próprias mortes. O intuito final da farsa era apenas convencer a seus pais de que vocês realmente se amavam. Depois, quando o efeito da “poção mágica” criada pelo padre perdesse o efeito, vocês voltariam à vida e voilá: “Podemos nos casar agora?”.
Leonardo jamais se esqueceu do sorriso de Isabela diante daquela primeira exposição (mesmo que o casal tivesse permanecido sério). Não, “curioso” seria a palavra mais apropriada. Depois de terminado o sorvete e limpado as mãos no vestido, a professora justificou o mérito de Rebeca:
– Eu sei, eu sei. Até aqui nada de original, não é? Contudo, o que eu e Leonardo achamos realmente intrigante foi o desfecho novo que Rebeca deu à história. Ela escreveu que, após suas famílias deixarem o cemitério, o padre se apressou, e arrancou vocês dois de dentro dos túmulos; que tudo na verdade fizera parte de um plano ainda mais elaborado, envolvendo escorpiões não venenosos e sangue de mentira. Ele sabia que independente de qualquer coisa que vocês fizessem suas famílias jamais se suportariam. Então, seus corpos foram levados em carruagens para fora da cidade naquela mesma madrugada, e, na manhã seguinte, quando o sol de Siena afugentava as últimas estrelas no horizonte, vocês abriram os olhos, beijaram-se calorosamente, e viveram felizes para sempre. Final bem criativo para uma garotinha de dez anos, não acham?
O casal nada respondeu. A mulher cochichou alguma coisa aos ouvidos do marido e eles saíram após uma rápida despedida. Isabela e Leonardo ficaram parados na calçada da escola vendo-os se afastarem e sem saber o que tinha acontecido de errado (mal sabiam que Rebeca jamais voltaria ao colégio depois daquele dia). Ainda na mesma tarde, após um longo silêncio enquanto voltavam a pé para a casa de Isabela, ela perguntou:
– O que você acha?
– O que eu acho do quê?
– A história. A lenda que Rebeca usou como pano de fundo para... Será que... Oh, meu Deus!
Fora aí que um sol pareceu explodir no rosto da professora e uma energia incontrolável lhe sacudiu o corpo. Como uma criança que acabara de descobrir o presente escondido dos pais na noite de natal, ela começou a falar desenfreadamente, misturando riso e lágrimas. Leonardo nada disse (as mulheres sempre tiveram um sexto sentido que as tornam mais imaginativas que os homens), e a abraçou sem tentar dissuadi-la daquela ideia maluca. Levou-a para casa e se despediu sem beijá-la. Quando ia saindo pelo portão, ela perguntou (talvez envolvida pelo contexto romântico da tarde):
– Você me ama, Leonardo?
Dois anos depois ele acenaria para ela da janela do trem e nunca mais tocariam naquele assunto, até que ela se casasse em 1960 e lhe mandasse uma foto às margens do Sena. “Você ainda se lembra daquele dia?” – dizia o cartão.
Sim, por Deus – jamais poderia responder. – Onde está você agora, Isabela? Você tinha razão, razão sobre tudo: a redação de Rebeca, a simulação das mortes, a lenda que ninguém além de nós dois sabe ser verdadeira. Que os jovens de Siena são reais e que vivem escondidos até os dias de hoje, caminhando entre pessoas normais. Quantos filhos e netos não devem ter tido ao longo de mais de quatrocentos anos de vida?
E sim, eu te amo. Sempre te amei. Mas por medo, ou por egoísmo, sempre pensei que a vida fosse curta demais para ser dividida com outra pessoa além de mim mesmo. Que nunca teríamos estrutura suficiente para enfrentar o mundo ou educar filhos. Me perdoe, Isabela, me perdoe por nós dois. Me perdoe pela vida que jamais permiti que tivéssemos. Por Deus, me perdoe.



segunda-feira, 22 de julho de 2013


Roleta na Estrada


Fazia exatamente cinco anos que eles repetiam aquilo. Claro, não todos os trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano – assim, daria muita chance à polícia local de apanhá-los. – No entanto, esse detalhe não deixa de reconhecer a verdade desta expressão: há cinco anos eles vinham repetindo aquilo, e se divertindo bastante com isso. Como faziam para não ser apanhados? Simples, a brincadeira de fato só rolava poucos dias dentro de cada ano. E, claro, nunca rolou na mesma data seguida em nenhuma dessas vezes. Repetir datas (criteriosamente, como se fosse um relógio suíço) era coisa para imbecis, ou serial killer, que teima estupidamente em reproduzir seus crimes utilizando sempre a mesma fôrma de bolo; um mesmo fatídico dia de cada ano, ou o mesmo tipo de mulher a ser esquartejada; gordinha, prostitua ou louras peitudas.
Entretanto, para Ismael e Gabriel, (nomes parecidos, é certo, apesar dos rapazes não serem irmãos, apenas primos), o dia em si não tinha muita importância. O quê eles escolhiam para fazer neste dia é o que contava de verdade.
Já se imaginou morando numa cidadezinha pequena (uma merdinha de mosca perdida no deserto), onde nada de substancial acontece? Sabe o que é não conseguir andar dez passos sem ter que cruzar com um rosto conhecido? As mesmas pessoas monótonas de sempre com suas vidinhas medíocres e entediantes? Já se imaginou num luarzinho onde a coisa mais interessante para se fazer aos domingos é vestir aquela calça branca e amarelada nos fundos e meter o pé na estrada que leva à igreja?
Sábado chega e lá está você sentado nos mesmos barzinhos de bebidas quentes de sempre; as minúsculas lanchonetes que seus pais te levavam ainda do tempo em que você cagava nas calças. E o resto da semana, então? Segunda-feira ter que ir à escola e estar obrigado a ouvir aquelas mesmas vozes repetidas todos os amaldiçoados dias e receber esculachos das mesmas professoras que também foram às mesmas professoras dos seus pais. É terrível, não queira experimentar!
Ismael e Gabriel despertaram para essa infeliz e excruciante realidade quando completaram treze anos (é, eles também nasceram no mesmo dia).
Em dezessete de março de 1942, os primos chegaram aos trezes anos. Idade em que os pelos dos rapazes começam a despontar embaixo das axilas e a voz vai dando a ideia de como ficará até o fim da vida. Diferente dos gêmeos do velho Clayton, dono da farmácia, que ganharam uma motocicleta envenenada cada um, para os primos aquele fora o pior dia de suas vidas. Suas mães os levaram para tomar sorvete (o mesmo sabor de sempre; chocolate com calda de chocolate) e, sem elas notarem o quanto aquilo tudo era ridiculamente ultrapassado e adocicado demais para rapazinhos já crescidos como eles, depois de pagarem ao caixa da sorveteria, as mamães ainda insistiram para que os meninos tirassem fotos, juntinhos.
Alana, a gata mais quente do oitavo ano, ficou rindo de longe, na praça, enquanto aquele imbecil do Brendan apontava aquele dedo ossudo para eles e ficava tirando sarro, imitando as poses que as mamães de Ismael e Gabriel pediam para que os dois fizessem.
malditoBrendanmilvezesmaldito!
Caso algum psicólogo pago pelo estado fosse separado para definir o perfil psicológico dos rapazes depois daquele dia, provavelmente ira se valer daquela tarde de fotos para fechar o seu diagnóstico como um típico caso de psicopatia compulsiva provocada pelas risadas irritantes daquele esqueleto do Brendan. Talvez por isso, o Brendan tenha sido o primeiro a desfrutar das diabruras dos primos.
Na semana seguinte à tarde de fotos na sorveteria, Brendan se ofereceu para levar Alana em casa após a aula. Era coisa de cinco e meia, e o sol se escondia por detrás de carregadas nuvens que mais pareciam fumaça de caminhão com motor batido.
Os primos, sentados em suas bicicletas enquanto acompanhavam o casalzinho andando de mãos dadas pela calçada, tiveram pela primeira vez na vida o que eles chamariam futuramente de “comunhão telepática”– é uma daquelas coisas legais que acontecem uma vez a cada dez trilhões de anos em que você fala em cima da bucha exatamente a mesma palavra que a outra pessoa que está falando com você, saca?
Pois bem, no caso de Ismael e Gabriel, eles não precisaram falar nada, não. Apenas pensaram, depois trocaram um par de olhares, bateram o punho um contra o outro e, como uma dupla de bailarinos do bolshoi, curvaram suas bicicletas ao mesmo tempo para a esquerda, saindo da estrada e entrando num atalho que os dois sabiam exatamente aonde ia dar: a casa de Alana.
Taciturnos durante o trajeto, sabiam exatamente o que iam fazer. A menina de cabelos vermelhos e ondulados não tinha nada a ver com o que eles haviam passado na tarde do sorvete de chocolate. Ela rira, é verdade – não, ela se esbaldara de rir, faltou pouco mijar nas calças – mas, ela não tinha culpa nenhuma naquilo. não passara de uma reles espectadora do diversões grátis faça os outros de otário Brendan Show. Se o seboso não estivesse àquele dia na praça, ela não teria rido, ela não teria nem percebido que eles estavam ali. A morte dos milhões de judeus não era culpa dos soldados nazistas, e sim de Hitler. Se os primos também já estivessem em 1974, reforçariam seus argumentos dizendo que o culpado pelas praias vazias da Califórnia àquele verão não tinha sido o Tubarão, e sim Steven Spielberg. Quem ganha o prêmio não é quem gargalha com mais força na plateia, e sim, o melhor comediante.
E você é um excelente comediante, não é Brendan?
      Alana se despediu do ossudo à porta e o asqueroso até recebeu um selinho de “valeu pela companhia”. Depois, voltou pela mesma estrada que seguira, assobiando desafinado a melosa september in the rain de James Melton. Os primos esperaram que ele se distanciasse um bom pedaço da casa da menina, e, ao virar a curva que dava para o lago dos sapos, pisando despreocupado sobre o chão de folhas, saíram da trilha de dentro do mato, fechando-o; um pela frente e o outro por trás. Não queriam matar o Brendan, não, ainda eram muito jovens para terem esse tipo de ideia. Profissionalismo mesmo só quando estivessem de maior. Entretanto, como tinham intenção em deixar o esqueleto humano vivo, ele poderia dar com a língua nos dentes mais tarde, e os primos estariam em sérias enrascadas. Não, eles iriam se divertir bastante com o Brendan, mas o artistazinho nunca saberia quem eles eram. Você pensa que os primos não pensaram nisso, também? Usaram as camisas para cobrir o rosto, deixando apenas os olhos de fora, como máscaras.
Os primos saíram do mato ao mesmo tempo e fecharam Brendan, um pela frente e outro por trás. A distância era boa, coisa de dez metros. O rapazinho que gostava de fazer os outros rir ficou estupefato, virando o pescoço repetidas vezes para frente e para trás. As mãos começaram a transpirar e tinha medo de olhar para os dois esquisitos.
– O-o que querem? – perguntou, sem reconhecer o som da própria voz que estava em frangalhos.
– Que nos faça rir, Brendan, só isso. – falou o que estava com a camisa preta no rosto. Sua voz era abafada pelo algodão do tecido sobre a boca.
– Como? O que disse?
– Ahahahahahahaha! Ele é bom mesmo, bem que você avisou! – falou o que usava a máscara branca.
– P-por favor, eu só quero ir para minha casa.
– É claro que você quer, Brendan, é claro que quer. – Máscara preta.
– Eu não tenho dinheiro na mochila – e a jogou. – Podem ver, se quiserem!
– Brendan, conta uma piadinha aí, vai.
As bicicletas foram se aproximando, lentamente. Os pneus cheios esmagando as milhares de folhas secas no chão.
Brendan, que nunca gostara de filmes de suspense, e, brilhante aluno de matemática que era, rapidamente ponderou suas probabilidades: lago dos sapos à frente, malucos com os rostos cobertos dos lados. A resposta parecia óbvia; arremeteu desvairadamente para dentro da mata às suas costas, deixando para trás além da mochila, as risadas aterradoras responsáveis pela sua primeira mijada nas calças, àquele fim de tarde.
AHAHAHAHAHAHAHA!!!
As lágrimas rolavam pela sua face enquanto o catarro amarelo como creme de maracujá pendia para dentro de sua boca. O pé esquerdo começou a deslizar dentro do tênis por causa da urina que descia pela perna debaixo da calça e se empoçava ali. Isso o fez diminuir sua arrancada e patinar, com dificuldades. As risadas estavam muito próximas agora, e ele, imprudentemente, resolveu olhar para trás para ter a certeza de quanta vantagem ainda tinha sobre seus perseguidores e encheu a testa contra um galho de árvore. Não doeu muito, não na hora, mas o impacto fez seus pés levantarem e no instante seguinte ele estava com as costas pregadas ao chão, e seus caçadores, zombeteiramente, caçoando dele e o avistando de cima.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
– Muito boa essa, Brendan! – falou o de máscara branca. – Pode repetir?
– Está doendo, Brendan? A gente pode te ajudar em alguma coisa?
Brendan chorava com as mãos no rosto. Anos mais tarde, ele repassaria aquela cena diversas vezes na mente, especulando se teria tido alguma chance caso tivesse tentado uma investida mais agressiva contra os dois mascarados. Não, sempre se assegurava no final dos cálculos que sua reação foi a melhor possível; era muito franzino em relação aos dois, e não sabia se eles portavam punhais dentro daquelas surradas calças jeans.
– Acho que ele está com calor, primo, veja como transpira! – máscara branca falou.
– Vamos fazer o seguinte – o de máscara preta falava com os pés bem próximos à cabeça do menino –, Brendan vai nos contar uma piada, se a piada for legal, ele fica com a roupa, caso contrário... vai poder desfrutar sem nenhum empecilho da brisa da tarde, e quem sabe até dá um mergulho no lago dos sapos. O que me diz, hein, Jerry Lewis?
Brendan ficou apavorado, pois não sabia nadar, e, naquela hora, os rapazes viram-no fazer a outra perna da calça marrom ficar preta; era a mancha molhada de urina que se denunciava mais uma vez.
Não precisa dizer que o resto da tarde traumatizaria Brendan para o resto da sua vida, não é? O garoto que de fato até dispunha de algum talento para a comédia, e era mesmo um bom contador de piadas, não conseguiu produzir nada de engraçado naquela horripilante situação. E a cada piada insossa contada, recebia uma série de uhuhuhuhu! como encorajamento para as próximas, e levava algumas bofetadas nas orelhas. Depois que sua última meia foi arrancada, máscara branca falou:.
– Humm! Que cheiro é esse? Não me diga que o bebê já fez xixi de novo!
– Ahahahahahahah! Agora não tem jeito, não, Brendan! Vamos ter que trocar a fraldinha, mesmo! – e removeram-no a calça de brim que a tia Ada lhe confeccionara. Foi ai que os primos notaram a cueca cheia de bolinhas, tipo Tarzan.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
– Essa nós vamos deixar, Brendan. Pô cara, tá muito legal!
– Ei, olha o que eu achei! Uma moedinha de cinco centavos. Tava no bolsinho do Brendan! Posso ficar pra mim, Brendan, como lembrança?
O menino colocava as mãos sobre os olhos. Já chorara todo líquido que seu corpo poderia produzir e agora apenas tremia e soluçava.
– Psiu! Um conselho, Brendan – o de máscara preta se agachou, ficou de joelhos e agarrou a cabeça do menino. Falou tão colado ao seu ouvido que Brendan sentiu-lhe a umidade da saliva pregada ao algodão do tecido em sua boca. – Acho melhor ir para casa agora antes que comece a chover – riscando o céu como serpentes, os raios também avisavam que, pelo menos naquilo, aquela coisa estava certa. – Já esteve fora de casa durante um temporal, Brendan? Já viu que tipo de animal pode sair do mato e ganhar a estrada? Vá pra casinha, agora, seu merda.
– Ahahahahahahaha! Esse Brendan, ele mata qualquer um de rir!
           Subiram nas bicicletas.
– Valeu, Brendaaaaaaaannnnnn! – falaram uníssono, e sumiram para dentro da mata com as roupas e o tênis de Brendan à mão.
Aquele fora o primeiro ano dos primos.
Nos anos seguintes, em datas esporádicas, vez ou outra eles trocavam aquele mesmo olhar conluiosamente, saíam de fininho do meio da rapaziada, e colocavam as mesmas camisas preta e branca no rosto para exercitarem o que de pior havia no coração de cada um deles.
Com o tempo foram amadurecendo, claro, e a seriedade das brincadeiras foi se intensificando.
Aos quinze, ganharam uma motocicleta indian no sorteio do supermercado Max, onde a mãe de Ismael colocara mais de duzentos cupons arranjados clandestinamente pela sua tia que trabalhava como caixa da loja. Os primos agora tinham asas, e fora justamente naquele ano que eles findaram o primeiro ser vivo de suas carreiras; o canário de estimação de Wanda, a gorda.
O bichinho cantava tranquilo em sua gaiola no fundo do quintal quando foi surpreendido por dois rapazes musculosos com o dorso à mostra e com os rostos cobertos por malhas. Eles começaram a derramar um líquido estranho sobre o pássaro, que a principio pensou tratar-se de água – às vezes sua dona o banhava, nos dias mais quentes, principalmente. – Mas a ave percebeu que a água que ele bebia e que às vezes Wanda o banhava, não tinha cheiro de nada. E aquela água tinha um forte odor que o deixava embriagado.
Quando Wanda saiu do banho, ainda com uma toalha pequena enrolada na cabeça e outra cobrindo o volumoso corpo de mais de vinte quilos sobressalentes, viu seu melhor amigo em chamas voando desesperado dentro da infernal gaiola de ferro que ela lhe comprara àquele ano como presente de aniversário.
A menina passou duas semanas sem ir à escola. Os primos, em companhia solene juntamente ao restante da turma, foram visitá-la em casa, e lhe deram um abraço quando lhe desejaram forças para que se recuperasse logo.
Aos dezesseis, eles já eram os donos da estrada, e passaram a consumir drogas juntamente com as inseparáveis cervejas. Iniciaram com a maconha, como a maioria de todo mundo. O novo professor de teatro foi quem os presenteara, aquele viado. E, claro, em retribuição a isso, nesse dito ano eles roubaram uma Polaroid do supermercado Max, e registraram o docente em momentos intimamente comprometedores com Sandoval, o cortador de grama do colégio.
No dia seguinte, o banheiro dos meninos e das meninas da escola estava apinhado de fotografias espalhadas do talentoso professor. O que ele fazia? Sorvia gulosamente o picolé de Sandoval. A direção ficou sabendo dois dias depois e além de Sandoval, Frederico Motta fora escorraçado da unidade de ensino sob a justificativa de que jamais conseguiria impor respeito novamente aos alunos.
         Aos dezessete, a polícia tomou conhecimento, e levou a sério pela primeira vez as denúncias do povoado que relatavam acerca de dois rapazes em cima de uma moto, e de como aqueles demônios haviam posto fogo em todos os carros estacionados fora da igreja na véspera do natal.
No mês de novembro de 1946 eles roubaram um Colt 45 cano longo e niquelado. Seus olhos faiscaram à luz daquela belezoca. A partir daquele dia passaram a se enfurnar dentro da mata depois que a vila estava dormindo para se empenharem na prática de tiro. A luz do farol da motocicleta era utilizada para iluminar os sapos que eles colocavam dentro das garrafas de leite como alvos improvisados. Naquele período, os primos também foram promovidos de meros usuários para revendedores da droga, e foi quando a grana começou a entrar de verdade.
Já não mais colocavam os pés na escola. Alana cresceu, e o corpo da ruiva respondera às expectativas. Não deu outra: estupraram-na à beira do lago dos sapos outro dia quando ela voltava da aula.
Em seu relato à polícia, a ruiva murmurava baixinho para que a enfermeira que limpava o sangue da sua genitália não escutasse o que ela revelava aos policiais; disse aos homens da lei que os rapazes não paravam de rir enquanto a estocavam com seus membros dilaceradores e lhes perguntando se ela também não estava achando aquela situação “engrossada”, e se ela tinha certeza de que não iria querer depois um sorvete de chocolate para tirar o ardor de dentro das pernas.
Tornaram-se exímios atiradores, e no ano de 1947, ano em que completariam dezoito anos, resolveram que era hora de amadurecer. Trocaram a motocicleta por uma linda picape Ford 1940, cor vermelha, uma bala. Quando o relógio no alto da torre da Igreja Batista anunciou três horas da madrugada do dia 18 de setembro, municiaram o Colt 45 e começaram a ronda que seria decisiva para a vida deles.
Fizeram uma aposta para ver quem ficaria com os papéis da picape, e único proprietário da encarnada. Seis câmeras na arma, seis tiros; três para cada um, alternadamente. Ismael e Gabriel iriam disparar três vezes, e quem errasse uma única vez, teria que entregar a sua parte do Ford para o outro que passaria a ser o proprietário exclusivo da caminhoneta. O negócio estava fechado.
Na verdade, suspeita-se que inventaram a história da roleta somente para exercitarem o tiro nalguma coisa que não fossem os sapos dentro das garrafas de leite.
         Pela decisão da moeda de cinco centavos que Gabriel ainda carregava no bolso da época do Brendan, Ismael – o da máscara branca – deveria começar com os tiros. Uma disputa de seis disparos. As regras também diziam que o adversário era quem escolhia o alvo do concorrente, e, por obrigação, teria que ser alguma coisa viva, claro.
Com os faróis da picape apagados, começaram a deslizar pela ruela da sorveteria. A vila só dispunha de oito policiais que se revezavam em duplas a cada turno de 12 horas. Àquela hora eles deveriam estar rodando perto do show de música gospel na ponte da amizade, cento e vinte quilômetros de distância da vila onde toda a mocidade tinha ido acompanhar aqueles farsantes evangélicos vestidos de roupas folclóricas. E por isso mesmo aquele dia houvera sido o escolhido pelos primos, toda a vila lhes pertencia agora, e eles poderiam atirar no que quisessem.
Como no gatinho de Ivone, por exemplo.
O preguiçoso felino dormia tranquilamente sobre uma almofada acolchoada posta na cadeira debaixo da varanda da casa da filha do pastor. Era um siamês, com lindos olhos azuis, mas que naquele momento estavam fechados, coladinhos. O bichano ronronava, talvez sonhando com um paraíso repleto de ratos suculentos e assados e servidos em pratos de porcelana branca ao leite quente.
Pela regra, Gabriel, o da máscara negra, era quem primeiro iria escolher. E ele escolheu o gato. Ismael estendeu o punho fechado e o primo respondeu, socando-o no ar. Antes de colocar seu talento à prova, Ismael deu um gole na cerveja que haviam trazido para animar a festa e depois apontou o cano niquelado do Colt 45 para o bicho dorminhoco. Mirou durante cinco segundos e puxou o gatilho; o disparo foi um baque surdo, e Tomás, o gato siamês, transformou-se numa pasta vermelha e marrom escuro a escorrer pelas gelosias da cadeira de vime. Os primos gargalharam e aceleram a picape de faróis apagados enquanto acendiam-se as luzes da casa de Ivone. Você tinha que está lá para ver a cara estúpida do pastor quando ele abriu a porta e veio esfregando os olhos conferir que estranho raio houvera sido aquele que caíra em sua varanda.
Atiçado pelas gargalhadas dos rapazes e pelo ronco estridente da picape, o labrador de Estevão, o açougueiro, teve a infeliz ideia de sair de sua casinha de cachorro no quintal do comerciante e partir atrás deles, latindo e mostrando os dentes da única forma que entendia ser ameaçador.
Ainda com a mão ao volante, Gabriel olhou para Ismael e recebeu desse um aceno de cabeça, indicando que sim, ele podia detonar aquele maldito canteiro de pulgas ambulantes que vinha correndo atrás pelo retrovisor. Ismael passou o revólver para o primo ao mesmo tempo em que se reclinava por cima do seu colo a fim de assumir o volante da picape. Gabriel, gargalhando como um louco, colocou o tronco para fora do carro e, virando para trás com as duas mãos empunhando firmemente a coronha da arma (como nos filmes da máfia que eles assistiam no Drive-in), estourou a cabeça do pesado cão, fazendo um buraco do tamanho de uma laranja bem entre os olhos. Ismael ouviu o tiro e viu pelo retrovisor o cachorro capotar três vezes pelo asfalto como um búfalo que tivesse sido abatido nas savanas africanas.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Um a um. Começaram bem.
Cruzaram a linha que delimitava o limite urbano da vila e se lançaram à rodovia estadual com o motor da picape girando a mais de cinco mil ciclos por minuto. O fogo avermelhado que vomitava pelo cano do escapamento parecia o rugido furioso de um foguete a caminho das estrelas. Liberdade, aí vamos nós!
Urravam enlouquecidos e Gabriel elevava o revólver para fora da janela. Já experimentou a indescritível sensação de possuir o toque de Deus nas mãos? Exalar apenas um leve suspiro e assistir à vida se esvair de qualquer criatura que você quiser? Somente escolher, apontar e pow! Já era?
A vaca premiada dos Silva foi o terceiro alvo a mostrar as patas para o céu de lua crescente àquela madrugada. A desproporcional produtora de leite pastava tranquilamente dentro do pequeno cercado da família Silva rebolando as tetas túrgidas e tendo o bezerro Teco logo atrás. O filhote implorava por mais uma sessão de mamadas e correu para junto da mãe quando os faróis da picape caíram sobre ele. Gabriel escolheu a gigantesca vaca como o próximo alvo e se arrependeu logo em seguida; aquele era um alvo demasiadamente fácil, grande demais, havia muita carne exposta ali.
Tarde demais, falou Ismael. E, com uma das mãos tapando um olho, tirando um sarrozinho em particular com o primo, meteu o dedo no gatilho, derrubando impiedosamente a vaca que há dois anos vinha garantindo a escola dos filhos dos Silva. Fácil demais. Obrigado, otário.
O bezerro idiota começou a berrar e berrar, fuçando o corpo da mãe e dando voltas, alucinado em torno dela. Você me deve essa, ouviu os olhos de Gabriel implorar, e o primo, gargalhando, concordou com um aceno de cabeça. Tiro certo. O bezerro se
tremeu todo como se tivesse levado um choque de alguma coisa invisível e caiu esparramado sobre o dorso da mãe, o sangue dos dois se misturando aos quilos de esterco do cercado dos Silva.
Tua mãe era uma vaca, você sabia? Ahahahahahahahahah!
– Voltamos à estaca zero. – Falou Gabriel enquanto enxugava as lágrimas de alegria e enfiava o nariz da picape pela estrada plana da estadual. Só então acendeu os faróis.
– Ainda tem um tiro para cada um. – Tomou outro gole de cerveja e esvaziou a terceira garrafa daquela noite.
– Os próximos desafios devem realmente valer a pena.
– É isso aí. – disse Ismael, e completou: – Mais o menos como aquilo ali.
– Cara, você é mais louco do que eu pensava.
Estacionaram o carro e Gabriel apagou os faróis.
Máximus, o cavalo negro de Dom Gonzales, trotava soberano dentro da fazenda do famoso traficante de drogas do estado. Foi Dom Gonzales, inclusive, quem iniciou os primos no lucrativo comércio da revenda de cocaína. Era também o perigoso traficante o responsável por oito dentre dez jovens que davam entrada nas clínicas de desintoxicação por aquelas bandas, e nove, dentre os que davam entrada no cemitério.
Dom Gonzales simpatizara com os primos desde o primeiro momento em que os vira. O gangster era conhecido pela capacidade de farejar potenciais à distância. Ah, ele farejava sim. E os dois rapazes não lhe cheiraram a outra coisa senão ouro. Ouro bruto e novo, e que pedia para ser lapidado. Jamais havia encontrado tamanha fúria e frieza em duas criaturas como aquelas. Ainda eram bastante jovens, a bem da verdade, mas o visionário senhor do tráfico não tinha dúvidas em quanto os primos ainda poderiam lhe oferecer quando amadurecessem. Ele já havia informado ao seu adjunto que aqueles dois seriam seus assassinos de confiança, acionados somente para solucionarem os casos mais escabrosos; juízes, delegados de polícia, e promotorezinhos metido à besta.
Infelizmente para Dom Gonzales – e mais especificamente naquela madrugada para seu belo puro sangue, Máximus –, os primos possuíam uma característica que as habilidosas narinas do gangster não puderam captar; eles eram loucos, suicidas. Não no sentido restrito da palavra, como se quisessem tirar a própria vida. Não, nada disso. Eram suicidas por não se importarem com nenhuma forma de consequência, compromisso ou lealdade (lembram-se do professor de teatro?).
O dono da maior rede de tráfico do estado não sabia, mas seus futuros pistoleiros eram almas insanas, fiéis unicamente a si mesmas, e ao cano do Colt 45.
           Estacionaram a picape à distância de cinquenta metros da fazenda de Dom Gonzales e deram uma boa olhada. A casa deveria ter mais de dois metros quadrados de extensão e era circundada por uma maciça cerca de madeira. Havia três carros estacionados dentro do cercado, e nenhuma luz acessa dentro da casa.
            Ismael arrancou a tampa da quarta garrafa e meteu o gargalo na boca, estava quente e tinha gosto de urina, mas a cocaína a fazia descer doce como mel.
– Cara, você é mais louco do que eu pensava – repetiu Gabriel.
– E os homens do chefe? Será que estão dormindo a essa hora?
– Danem-se os homens do chefe. – falou Gabriel.
Ismael teve um ímpeto de riso e se engasgou com a cerveja, ambos gargalharam.
– É assim que se fala, primo.
– Dane-se o chefe – repetiram juntos, e tocaram os punhos fechados no ar.
Ainda com os faróis apagados, Gabriel engatou a primeira e quando tirou o tênis do pedal da embreagem, o motor da picape disparou, jogando o carro para frente e voando direto para cima do cercado. Os cavalos correram assustados no momento em que as madeiras foram arrebentadas, e no instante seguinte o Ford já estava dentro da propriedade do homem mais perigoso do estado.
Foi tudo muito rápido: o ponteiro da picape atingiu cento e cinquenta quilômetros por hora e, apesar do possante animal estar correndo a princípio a uma distância confortável de seus perseguidores, o alcance em pouco tempo foi inevitável. Ismael tirou o Colt 45 do cinto e o rolou no dedo pela alça do gatilho, como Durango Kid no cinema. Em meio ao barulho ensurdecedor do motor e os solavancos desesperados de Máximus, ele conseguiu ouvir o primo bufando: – vai, vai, mata esse pangaré! mata esse pangaré! Ismael esperou o carro emparelhar com o garanhão negro e o acertou em cheio na cabeça, de lado. A violência do disparo jogou a cabeça do animal para o lado como se ele tivesse sofrido um poderoso soco invisível, suas patas dianteiras se dobram e o resto do seu corpo continuou se projetando para frente, partindo-lhe a espinha ao meio. O cavalo de trezentos mil dólares rolou cinco vezes sobre o gramado e suas pernas pararem de espasmar, finalmente convencidas de que estavam mortas.
Ahahahahahahahahahahahaha! Maaaaaaaassa!
– Três a dois! Três a dois! – berrava Ismael e erguia os dedos, simbolizando a vantagem que tinha agora em relação ao primo.
            Arrebentaram novamente a cerca de madeira e voltaram à estadual em duas rodas, brigando com o volante do carro para manter os pneus sobre o asfalto e o espancando o câmbio das marchas a ponto de quase parti-lo: terceira, quarta, quinta, 120km\h.
Foda-se o chefe! Foda-se o chefe! Foda-se o chefe!
A esposa de Gonzales surgiu na janela do primeiro andar e, após fechar a fina camisola, forçou os olhos o melhor que podia para tentar enxergar além do que sua retina lhe permitia. Dois faróis vermelhos como fogo sumiam no horizonte. Olhou para baixo e viu os homens de seu marido saírem apressados pela porta de vidro da cozinha da casa, alguns ainda de meias e cuecas, todos de arma em punho. Somente duas horas mais tarde, quando o sol aparecesse, eles veriam o verdadeiro saldo do atentado; o cavalo Máximus coberto de urubus no meio do gramado da fazenda. Dom Gonzales perguntaria quem estava no turno a hora em que ouviram o disparo. Roberto só dormira por acreditar que ninguém era estúpido o suficiente para tentar invadir a casa do seu chefe. Afinal, o homem tinha passado mais pessoas pelo portão do céu do que São Pedro. Sua errônea suposição contribuiria para que os urubus de Máximus tivessem outra opção de café naquela manhã.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
– Bate aqui meu irmão, bate aqui! – gritava Ismael, oferecendo a palma da mão para o primo. – Quem é o bom aqui, hein? Quem é?
– O bom sou eu. – Respondeu Gabriel. – Escolha o próximo alvo, e quando eu acertar, a gente volta novamente à estaca zero, e deixa a disputa para outra noite, já tá amanhecendo e preciso dar meu último disparo.
– Ah! Só não acaba se você acertar, meu amigo, se você acertar! – enfatizou bem Ismael, fazendo questão de pronunciar separadamente a pequena partícula que era uma condicional indicativa que o documento do carro poderia passar a ser somente seu dentro de pouco tempo.
– Sabe que não vou facilitar pra você como fiz com o bezerro dos Silva, não sabe? – debochou.
– Escolha o que quiser – disse Gabriel. – Escolha o que quiser e da cá o revólver.
Ismael abriu outra cerveja com os dentes e cuspiu a tampa fora. O dourado belo do sol irradiava acima dos montes. Os primos deveriam ter rodado perto de cem quilômetros desde que deixaram a vila. A estadual cada vez mais lhes chamava para desfrutar do sabor da liberdade.
Uma majestosa águia grasnou acima deles e os primos viram-na cruzar a estrada e pousar suavemente sobre uma pedra ao lado da rodovia.
Ela trazia um coelho imprensado entre suas garras e começava a dilacerá-lo com o bico, rasgando-lhe a carne branca e engolindo-a em enormes tachos.
           A cena era poderosa, e realçava singularmente a seleção natural do mundo, ela colocava cada indivíduo no seu respectivo papel, apartando sem melindres o preto do branco. Ali estava a caça e o caçador, o forte e o fraco. Aquela era uma das poucas verdades absolutas do universo: uns haviam nascido para devorar e outros para serem devorados.
Com o carro desligado no meio da estrada e dividindo gole a gole a última cerveja que restava, encostaram-se aos bancos de couro da picape e ficaram assistindo extasiados à ave fazer sua refeição matinal.
A águia elevou o olhar para os primos e pareceu não se intimidar com a súbita curiosidade deles. Sem nenhuma cerimônia, rasgou a barriga do coelho e tascou-lhe um pedaço do fígado, engolindo-o em segundos.
– Que beleza, não é? – falou Gabriel.
– Hum-hum – respondeu Ismael, e provou mais um gole da bebida.
         O sol agora brilhava por detrás das asas do pássaro e ele limpava o bico entre suas penas de cores variadas, continuava indiferente ao par de homens que lhes admirava à distância. Estaria bem alimentada até a noite, quando alçaria voo novamente à procura de outra presa. Isto é, se eu permitir, pensou Ismael.
Gabriel arrancou fora a máscara negra e passou a mão pelos cabelos, embaralhando-os ainda mais. Parecia extasiado pela plumagem selvagem do pássaro e lentamente viu a coronha do revólver oferecida por Ismael tomando forma a sua frente. Sorriu.
– Sua vez, primo. – falou o outro.
Gabriel olhou-o e lágrimas cintilaram nos seus olhos, profundamente agradecidos por tão honrosa tarefa. Pegou a arma com delicadeza das mãos do primo e a beijou, sentindo o gosto de pólvora e o ardor nos lábios pelo contanto com o cano quente e ainda insaciável do revólver (apesar das cinco vidas já ceifadas àquele fim de madrugada).
Matar a águia e ficar quites com Ismael – pensou no ato. Mas aquilo significava mais do que isso; até então eles só haviam matado coisas que rastejavam sobre quatro patas, animais domésticos, bichos sem importância. Aquela águia seria o ultimato para a liberdade decisiva, ela era a bola derradeira na caçapa que lhes daria uma guinada de 180 graus nas regras da natureza, transformando o caçador em caça. Quem sabe após aquele disparo não voltassem à casa de Ismael onde guardavam quilos de munição e depois de recarregar o revólver não fossem bater um papo com Dom Gonzales. Sim, cara a cara, e meter um tiro bem no meio daquela testa reluzente de corno filho da puta. E com um detalhe, bem na frente de todos os seus comandados?
           Ah! Talvez aqueles delírios fossem resultado da cocaína que começava a lhes fritar o cérebro. Porém, os neurônios explodiam, e a consequência daquele ato se desenhava bem ali à frente deles. A inesperada e corajosa atitude os promoveria a novos chefes do tráfico na vila, e quiçá, em anos vindouros, do estado e do país.
Do mundo! – falaram juntos, e gargalharam, desfrutando novamente daquela nostálgica e inusitada sensação de comunhão telepática que os acometera no dia da brincadeira com Brendan, às margens da estrada da casa de Alana.
Após um momento de silêncio sacerdotal, Ismael falou:
– Acha que é possível? – e lançou ao primo seu olhar inquisidor.
Espiaram a águia; ela devia medir dois metros de envergadura de uma ponta a outra da asa.
– Fica olhando, seu babaca. – respondeu Gabriel, sorrindo eletrizado, como uma criança.
A águia levantou o pescoço e mirou os dois, como se imaginando o que lhes passava na cabeça àquela hora.
Gabriel enxugou as lágrimas que rolavam dos seus olhos e apontou o cano do Colt para a gigantesca ave. Se ela entendeu o que aconteceria em seguida, os primos não desconfiaram. Ismael, apesar de saber que o carro seria inteiramente seu caso Gabriel errasse, de repente pegou-se torcendo para que o primo tivesse êxito, sim, e espalhasse os miolos daquela ave de merda sobre o mato mirrado ao redor da estrada. Acertar a águia significava abrir-lhes as portas para o mundo. Sorria por dentro, e sua alma gritava, Gabriel podia ouvi-la, sério: vai logo, mata essa desgraçada! Lembrou-se dos tediosos domingos na igreja, dos barzinhos no sábado, das professoras matronas. Lembrou-se do choro acovardado de Brendan, do canário de Wanda em chamas na gaiola, da carne macia e molhada de Alana. As lágrimas desciam, o delicioso assobio do vento sibilava e invadia as janelas da picape estacionada.
– Pronto para ter o mundo aos seus pés, primo? – perguntou a Ismael, baixinho.
– Mata essa desgraçada de uma vez! – respondeu sorrindo por entre os dentes.
Gabriel puxou o gatilho.
O som ensurdecedor provocado pela arma ecoou se repetindo diversas vezes até se perder no longínquo horizonte da estrada. Fora um tiro perfeito; não deixou o cano tremer muito – como os melhores atiradores fazem –, e nem recuou a mão após sofrer o coice natural da arma provocado pelo projétil cuspido e sendo arremessado furiosamente à velocidade de 400 quilômetros por hora. Porém, para infortúnio dos dois aspirantes a assassinos, a águia voo, e teve apenas umas das poucas penas da cauda atingidas pela bola de fogo que passou raspando, mas que se mostrara ineficiente diante do instinto de sobrevivência do pássaro que o alertara milésimos de segundos antes do dedo de Gabriel causar pressão sobre o gatilho.
A rainha de todas as aves grasnou em repúdio à intenção dos dois pequeninos homens e voou por sobre suas cabeças, ganhando cada vez mais altura e se distanciado dos reles bípedes.
– Nãããããããããooooooooo! – esbravejou Gabriel, batendo repetidas vezes a testa de encontro ao volante do Ford. – Maldiçãomilvezesmaldição! – a buzina do automóvel respondia à cada investida, quebrando intercaladamente a quietude sepulcral da estrada deserta.
Ismael abaixou a cabeça e ficou olhando para os próprios sapatos, sem pensar em absolutamente nada pela primeira na vida desde que aprendera a comer sozinho sua própria sopa de aveias. Ficou ouvindo o primo chorando ao lado e enchendo a direção do veículo de muco nasal. Pensou em tentar amenizar-lhe a dor, deslizando-lhe as mãos sobre os cabelos, mas recuou no derradeiro instante; toques daquela natureza eram coisa de viado, e gestos de piedade só serviriam para encher-lhe ainda mais o coração de fúria.
Não se sabe por quanto tempo permaneceram ali, de cabeças abaixadas e chorando. Gabriel a lambuzar o volante do Ford com seu catarro e Ismael olhando e contando repetidas vezes o número de voltas que seus cadarços davam nos buracos do tênis antes de sair e entrar novamente. Estava como que hipnotizado e imaginou mais uma vez que a cocaína estava de fato canibalizando o seu cérebro. Subitamente, outro som foi percebido além das lamúrias de Gabriel; um menino, de nove ou dez anos talvez, pedalava displicentemente à distância de quarenta metros à frente da picape deles.
Os primos ergueram suavemente a cabeça e avistaram as costas do menino sobre a bicicleta, deduziram que ele havia saído de dentro do capinzal nalguma daquelas várias estradas de areia que cruzavam a estadual e agora partia para casa, tão inocente e sozinho.
Os primos cruzaram aquele velho olhar que cada vez mais se tornava uma constante entre eles e Ismael, desta feita, pareceu não concordar com as intenções que pairavam no ar, apesar de ele mesmo ter pensando naquilo no mesmo instante em que avistara o garoto.
– Não, Gabriel! – falou. – Cara, nem pense nisso! É só um guri!
– E Deus lhes proverá o sacrifício! – disse-lhe Ismael, evasivamente. Sorria e arregalava os olhos, eles estavam vermelhos, mas não era somente por causa das lágrimas. Ismael também achou que o pó estivesse reduzindo a capacidade de raciocínio do primo, triturando-lhe de vez a sanidade.
– Lembra-se das histórias de religião, no primeiro ano? – perguntou Gabriel, enquanto passava o braço da camisa para enxugar o nariz. – Quando Abraão saiu para caçar com Isaque, seu único filho, e o menino não parava de encher o saco do pai, perguntando como um papagaio de pirata: “Pai, onde está o cordeiro que vamos sacrificar a Deus, pai. Onde está o cordeiro?”
– Cara, liga a porra desse carro e vamo simbora. – Falou Ismael, sem querer dar-lhe ouvidos.
O primo, agora engrossando a voz na tentativa de interpretar o patriarca bíblico, falou:
– “Não se preocupe, meu filho Isaque, Deus proverá, Deus proverá”. – e, apontando para o garoto que pedalava sobre a bicicleta, completou o que o outro já sabia: – Taí o sacrifício Ismael, meu velho, Deus p-r-o-v-e-r-á.
– Você tá maluco! – retrucou. – Acabou a disputa, e você perdeu a aposta, meu caro. Acabaram-se todas as balas, esqueceu?
– Não, não esquecei – e bateu com as duas mãos sobre o volante do carro. Repetindo num crescendo – Não, não esquecei! – Seus dedos esticavam o catarro pregado ao volante do veículo e os globos oculares faiscavam.
– A gente não vai fazer isso, cara. – falou Ismael, e tocou a mão do primo que já estava para dar a partida na caminhonete. Gabriel deu-lhe um chega pra lá e girou a chave na ignição.
A princípio, o motor velho do Ford rangeu, cuspiu, como se não quisesse pegar, mas depois que os lábios irados de Gabriel o amaldiçoaram três vezes seguidas, o bicho respondeu; berrando como um touro enfurecido e expulsando fumaça por todos os buracos. Ele também já estava pronto para matar.
Num último ato de desespero, Ismael tirou a moeda de Brendan do bolso e falou aos berros para Gabriel que já engatava a primeira e tirava o pé da embreagem, fazendo a carroceria da picape saltar e começar a devorar a estrada.
– A moeda do destino tá na minha mão, entendeu, cara? – falou Ismael. – Se der cara, o menino vive. Coroa, vai para o buraco. O que acha?
– Dane-se a moeda – respondeu Gabriel, e gargalhou.
– Como é?
– Isso mesmo que você ouviu, dane-se a moeda, dane-se Dom Gonzales, dane-se o destino! Ahahahahahahahahaha! E pisou fundo no acelerador, avançado como uma flecha certeira para o pequeno ciclista solitário.
Ismael jogou as mãos na cabeça, rindo também, mas achou que talvez fosse pelo efeito da droga, aquilo não tinha nada de engraçado. Meteu os dedos entre os cabelos e começou a tentar arrancá-los a fim de provocar alguma dor a si mesmo que o despertasse daquela contagiante loucura.
Assustado pelo ronco do motor que se aproximava, o menino pela primeira vez pareceu perceber que um carro desgovernado avançava alucinadamente em sua direção. Talvez por ainda não dispor de malícia suficiente para entender o que se passava ou simplesmente por pura educação de trânsito, saiu como um raio da linha do veículo e se jogou no acostamento da via estadual, deixando cair as flores que conduzia na cestinha de sua bicicleta e permitindo que a máquina da morte passasse por ele para depois frear bruscamente logo à frente. O incômodo cheiro de pneu queimado se levantou no ar.
O garoto pensou em soltar um palavrão contra aquele motorista desatencioso que quase lhe tirara a vida, mas lembrou-se de que sua mãe não gostava de palavrões e de que também não conhecia nenhum.
Ficou respirando apressado e segurando-se no guidão da bicicleta. Suas pupilas quase estouraram quando viu a picape fazer a manobra no meio da estrada, cantando pneu novamente, e começar a acelerar de novo, desta vez intencionalmente por sobre o acostamento, em sua direção.
Seu coração congelou. Saiu abruptamente da rodovia e ganhou a primeira rua de areia que tangenciava a estadual. Agora pedalava desesperadamente para salvar a própria vida sem entender o que havia feito de errado contra aquele possível motorista maluco. A picape abandonou a pista de asfalto e entrou como um míssil dentro da estradinha envolta pelo capim alto. Agredia furiosamente a estrada de terra e ia deixando para trás uma onda gigantesca de poeira e partículas de pedras que aumentava à medida que o nariz do veículo se aproximava do pneu traseiro da bicicleta do menino
Ismael viu quando a criança acelerou os pedais como pôde e o previsível aconteceu; a corrente não suportou a tração com que era forçada e se quebrou, fazendo a criança cair e rolar no meio da estrada. A caminhonete agora parecia achata ao chão de tão rápida que se aproximava. Ismael olhou de relance para o velocímetro, ele havia colado na extremidade direita. Num último gesto de apelo, chegou mais uma vez a tocar o braço do primo, como quem dizia: você realmente não precisa fazer isso, é só um guri. Mas Gabriel novamente afastou-lhe a mão e firmou ainda mais as garras ao volante, apertando-o ao ponto dos dedos perderem a cor nas articulações. O assassino ainda se adiantou um pouco mais à frente  como fazemos quando estamos vendo algo interessante em frente à televisão e queremos ter a certeza de que não vamos perder nenhum detalhe daquela cena épica.
O menino, estúpido, ao invés de se jogar para dentro do capim alto e tentar livrar sua pele, teve a maluca ideia de voltar engatinhando para recolher as últimas flores que tinham caído da cestinha da sua bicicleta. Num átimo de tempo, a luz do sol iluminou aquele pequeno rosto e Ismael pode conferi-lo de perto; era incrivelmente belo, apesar de estar sujo por causa do pó da estrada e das lágrimas que agora rolavam através de brilhantes olhos azuis. Pela primeira vez Ismael sentiu piedade por alguma coisa neste mudo e pela primeira vez na sua vida o menino experimentou odiar alguma coisa de verdade em sua vida.
A distância agora não era mais que 20 metros; isso significava menos de meio segundo para o choque. Ismael fechou os olhos, Gabriel arregalou os seus, o menino escondeu o rosto entre os braços e enlaçou os joelhos. Seu último pensamento antes da inevitabilidade da colisão: desculpa pelas flores, mãe.

Eram sete da manhã quando o grupo de jovens da vila voltava do show de música gospel que havia varado a madrugada na noite anterior nas proximidades da ponte da amizade distando cento e vinte quilômetros da vila, vindo pela estadual.
       Júlio e Silas, a dupla de policiais escalada para acompanhar os meninos durante o evento, adiantava-se à frente dos carros para evitar ouvir mais daquela tediosa música country que passara a noite azucrinando-lhes os ouvidos. Os dois amigos não viam a hora de enxergar a porta do posto policial, passar o serviço para os rendeiros e tomar uma ducha ao chegassem às suas casas, quando seriam abraçados pelos filhos e pelas esposas. Entretanto, seus olhares foram atraídos para uma estranha fumaça que se denunciava a alguns metros de dentro do capim alto, bem ao lado da estrada principal por onde vinham seguindo.
– Mas, que diabos é aquilo? – perguntou Silas, tirando o braço para fora da janela do carro e mostrando ao amigo a fumaça negra que ganhava o céu azul de nuvens brancas. Mas nem era preciso apontar, Júlio também já a avistara e se preparava naquele instante para fazer-lhe a mesma pergunta.
Instintivamente, a viatura policial guinou para a esquerda sem avisar para o comboio de carros que vinha atrás, provocando um inesperado iiiiiiii por causa dos pneus derrapando sobre o asfalto e arrancando um urro de emoção da galera jovem que vinha logo em seguida.
Os oito carros pararam brutalmente, deixando várias tiras de asfalto na rodovia. Os jovens motoristas enxugaram o suor do rosto e deixaram escapar um silvo de alívio, satisfeitos consigo mesmo por terem evitado um acidente e brecado os veículos à distância de um dedo ente cada um. As moças, com suas calças boca de sino tremulando ao vento, pularam pelas janelas dos carros e seguiram a pé dentro do matagal, tapando o nariz para não respirar a poeira que havia sido levantada pela viatura da polícia que já estava parada mais à frente.
Chegando o mais próximo possível daquele monte de metal retorcido em chamas, os policiais desceram da viatura e entreolharam-se. Silas tirou o quepe que encobria os últimos fiapos de sua careca quase totalmente exposta e foi conferir de perto aquilo que outrora havia sido uma picape Ford 1940. Ela estava rasgada ao meio, bem no centro, e quase que totalmente da cabine à capota. Faltara coisa de uns sessenta centímetros para dividi-la perfeitamente em duas metades iguais. Era como se tivesse colidido com um meteoro, ou uma locomotiva. – Não, uma locomotiva a teria achatado, e não dividido a condenada ao meio daquela forma. O mais provável seria um míssil, daqueles bem finos.
Júlio se aproximou do companheiro e apontou para os dois corpos ocupantes do Ford destroçado. Eles estavam esmagados pelas ferragens do veículo, cada um do seu lado, como sardinhas enlatadas. Seus rostos eram totalmente irreconhecíveis por causa do fogo que os carbonizara completamente.
– Mas, que diabos aconteceu aqui? – perguntou Silas, e cuspiu em cima de uma das calotas da picape que cintilava em brasas ao lado do capim gigante. A saliva rapidamente evaporou, produzindo um sibilo semelhante a isso: ssssssss, avisando que o guarda nem pensasse em por o pé ali se não quisesse ficar sem a sola do sapato.
A garotada havia abandonado os carros na estrada e agora se acotovelava dentro do capim, curiosa por espiar aquela tragédia que era uma novidade ímpar na vila pequena onde a maioria deles morava há dezoito anos e tinha nas festas de comício as maiores agitações a cada quatro anos.
– Afastem-se, vamos, afastam-se todos! – ordenou Júlio. – Não sabemos qual a origem desse acidente. Pode ter sido coisa de outro planeta, e isso tudo aqui deve tá cheio de tudo quanto é tipo de radiação. Voltem para os carros, agora!
         Lana, a irmã mais jovem da ruiva estonteante e de nome parecido, agachou-se dentro do capim e colheu uma flor hortênsia. Olhou para o infinito mato crescido que parecia encostar ao céu e ficou cheirando a flor, imaginando em seu curioso cérebro de menina prodígio como ela (a flor) havia parado ali.

O menino chegou à fazenda onde morava empurrando sua bicicleta com a corrente quebrada. Pelo menos aquilo não era problema, já havia acontecido outras vezes e seu pai sabia como consertar. O que nunca havia acontecido antes (com certeza) era ter toneladas de metal se rasgando contra seu corpo como se fosse macarrão cozido.
        Ele se lembra perfeitamente de ter ouvido o carro vindo furiosamente para cima de si e de ter enfiado as mãos na areia e fechado os olhos no último instante antes da colisão. Sentiu o para-choque da picape se achatando no contanto com seu ombro e o radiador explodindo em mil pedaços. Em seguida, o motor quente virou chiclete e o eixo entre os pneus se quebraram como palitos de picolé. Quando abriu os olhos novamente, não havia sido deslocado um centímetro de onde estava, sério! Sua camisa estava rasgada e o chassi do veículo tinha se transformado em dois, uma parte para cada lado do seu corpo, mostrando o interior maciço do ferro niquelado como as colheres de prata que ele comia sopa em casa. Lembra-se de ter se levantado suavemente sem saber o que deveras lhe tinha acontecido e foi naquela hora que a gasolina que pingava sobre os restos do motor em chamas explodiu, desembaraçando seus cabelos e causando-lhe um tremendo susto por causa do rugido da combustão instantânea. Mas, por incrível que pareça, por mais que sua mãe lhe tivesse alertado diversas vezes acerca dos perigos em se brincar com o fogo, aquelas lindas labaredas não lhe fizeram mais calor do que o cobertor de flanela que ele dormia. 
O menino andou entre as chamas e viu os dois sujeitos que tinham atirado o carro contra seu corpo no meio dos destroços. Havia muito sangue saindo pelo nariz, boca e ouvidos. Estavam mortos. A pele do rosto deles se derretia como cera por causa das chamas do veículo. Foi nessa hora que ele se convenceu que sua mãe não estava totalmente equivocada quanto aos riscos do fogo.
Saiu andando de dentro das chamas e batendo as mãos nas pernas para tentar salvar o máximo que podia da bermuda em chamas.
Ao chegar à cozinha da fazenda, onde a mãe preparava o almoço, entregou-lhe meio que sem jeito a meia dúzia de flores que restara das mais de cem que ele havia colhido. Sabia que a mãe gostava de hortênsias; não, ela as amava.
          Porém, após ela receber as flores com um sorriso, ela ficara inquieta. Perguntou-lhe o que havia acontecido com suas roupas e que cheiro estranho de fumaça era aquele impregnando-lhe os cabelos. Agradeceu a Deus por não ter precisado mentir pra ela, pois ao mesmo tempo em que lhe perguntava todas aquelas coisas, cheirava-lhe a pele e torcia o nariz, e, sem esperar qualquer resposta, ordenou a ele que fosse logo tomar um banho.
O menino pegou uma toalha limpa que secava no varal e se acocorou junto ao poço da fazenda para fazer o que sua mãe havia pedido. Ali havia um balde grande com água e ele foi derrubando poucos canecos sobre os cabelos e ensaboando-os, lentamente. Ficou olhando o beija-flor que vinha toda manhã enamorar as rosas silvestres que sua mãe cultivava no alto da janela, e dois pensamentos lhe ocorreram repentinamente naquele instante:
O primeiro, enquanto seus olhos acompanhavam com atenção as minúsculas asas do pássaro azul (naquele frenesi louco, indo e voltando ininterruptamente), foi de que o professor na TV se enganara a respeito de um detalhe acerca das pequenas aves. O especialista dissera, no documentário, que os beija-flores eram capazes de bater as asas oitenta vezes por segundo. Bom, ou o professor se enganara ou pelo menos aquele beija-flor ali era diferente – pensou o menino. Contou 75 batidas de asa no primeiro instante e 77 no segundo seguinte. O outro pensamento veio logo em seguida, e o fez sorrir. Percebeu de repente que não lhe parecia mais ser tão difícil fazer o que aquele beija-flor fazia. Ficar só ali, parado no ar.


Fim

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Espetacular Remake de Homem-Aranha é quase Espetacular.



   As comparações são inevitáveis: Afinal, quem é melhor? O Homem-Aranha de Sam Raime ou o novo Aracnídeo dirigido pelo jovem diretor de videoclipes Marc Webb? Para não cometermos nenhuma injustiça com os dois filmes, vamos analisá-los tecnicamente nos seus principais aspectos.


Maguire ou Garfield?

Nunca escondi que o Peter Parker de Tobey Maguire me parecesse muito convincente. Acho que os roteiristas exageram quando insistiram em colocar o personagem em situações ridículas e desmoralizantes, mesmo após a sua transformação no Homem-Aranha. As histórias do Aranha nas mãos de Stan Lee, seu criador, davam a entender que o jovem estudante era o alvo preferido dos colegas de escola para praticarem bullyng, somente até o sobrinho de May Parker ser picado pela aranha radioativa. Depois, me digam, como alguém conseguiria acertá-lo com toda aquela agilidade para desviar-se de balas?
Então, esse novo Parker nos mostra como realmente um adolescente se sairia após adquirir os reflexos de uma aranha (às vezes, exagerando. Não esqueça que com Grandes Poderes, também vem Grandes Responsabilidades). Por isso, o franzino Peter bota pra ver o outro lado assim que descobre que consegue levantar um carro com as mãos. O ator Andrew Garfield está perfeito na pele do jovem Peter, dosando nas medidas certas a excentricidade peculiar dos nerds e a genialidade do inventor. Outro ponto imperdoável do primeiro Homem-Aranha, foi ter feito as teias saírem de dentro do organismo de Peter (arghh!), rasgando quase meio século de lenda, quando a ideia original concebida por Stan era de que realmente as teias tinha sido resultado de uma invenção química; nas revistas, do próprio Peter, no filme, das indústrias Oscorpo (por isso, o novo longa não conseguiu fechar o dez, neste quesito).
 O segundo ponto que gostaria de destacar é a origem do herói; acredito que no primeiro filme Sam Raime preocupou-se mais em nos dar uma visão do acidente que levou Peter a se tornar o personagem preferido de nove entre dez apreciadores de histórias em quadrinhos. Os motivos que o levaram a ser o escalador de paredes também me pareceram mais consistentes no primeiro filme do que nesta nova adaptação, quando Marc Webb  dar a ideia de querer colocar logo a roupa vermelha carregada de teias no jovem estudante e vê-lo soltar sopapos nos bandidos da cidade. A origem do Homem-Aranha de 2002 foi bem mais arrebatadora e comovente do que esta nova película, portanto, temos um empate até agora.

As meninas de Peter: Mary Jane, quando começa a aparecer nas primeiras histórias em quadrinhos do Homem-Aranha, é o tipo de mulher que nunca daria bola para o desprovido de grana e futuro fotógrafo do Clarim. Ela passa a ideia de ser aquele tipo de mulher inalcançável por qualquer mortal, linda e independente e, mesmo que ela faça a cabeça de qualquer marmanjo (e nisto se inclui Peter Parker) o jovem não demonstra pretensões de envolver-se amorosamente com ela, pois seu coração já está ligado ao de Gwen Stacy, seu primeiro e verdadeiro amor. Os fãs do Homem-Aranha nunca perdoaram os artistas Gerry Conway e Gil Kane, pois foram estes famigerados que levaram embora dos quadrinhos a figura angelical da fantástica loira, fazendo com que os números # 121 e  # 122 da Amazing Spider-Man arrancassem lágrimas de seus leitores e colocassem um marco inicial nas histórias em quadrinhos, como quem dizia: pois é pessoal, depois dessa, vocês não podem cochilar, pois, assim como no mundo real, qualquer coisa terrível pode acontecer.
   Para qualquer fã do Aranha, a sua namorada sempre será a inesquecível Gwen, pois aquela história nos deixou com a sensação de que com ela, tudo daria certo, mas que pela intervenção do odiado Norman Osborn, eles foram violentamente privados de desfrutar uma vida inteiramente a dois, dividindo sonhos e frustrações, alegrias e tristezas. Ela foi seu amor da juventude, de uma época inocente e sincera, de uma época que nunca mais voltaria atrás. Inclusive, para que você que não teve ainda a oportunidade de ler essas histórias referidas agorinha, saiba que todas aquelas peripécias envolvendo a Mary Jane no primeiro longa no alto da ponte do Brooklin, acontecerem na verdade com a Gwen, só que, nos quadrinhos, a filha do Capitão Stacy não teve a mesma sorte da ruiva interpretada por Kirsten Dunst.

Os vilões: É complicado fazermos esta avaliação, levando-se em conta que Sam Raime produziu uma trilogia enquanto que o Marc agora que começou. Mas, se compararmos o Lagarto com o Dr. Octopus (o melhor vilão dos filmes anteriores), creio que devemos ser sinceros e não cairmos no pecado de todo brasileiro diante das urnas: memória fraca. Alfred Molina nos apresentou um Dr. Octopus digno de aplausos. Suas cenas com os tentáculos em movimento (retirando o chapéu enquanto toma um drink, contando dinheiro e acendendo um charuto) são irrepreensíveis, é por isso, mas não tão somente que o Homem-Aranha 2 continuava imbatível como um dos melhores filmes adaptados dos quadrinhos de todos os tempos.
   O lagarto de Rhys Ifans é um bom vilão, mas creio não estar sendo ingrato quando digo que não passa disso. A sua caracterização também não ajuda muito o ator galês, lembrando bem mais o Iguana (um outro inimigo do Aranha) do que propriamente o outro eu do Dr. Connors. Novamente, empatamos até aqui em 2 x 2.

Os Efeitos Especiais:  Incrível o que se pode fazer em dez anos de cinema em matéria de efeitos especiais. As cenas de ação do novo Homem-Aranha nos dão a sensação de que realmente existe alguém se balançando entre os prédios, diferente da maioria das tomadas dos outros anteriores quando em algumas cenas percebia-se claramente o herói digitalizado e com movimentos (hoje) um tanto quanto artificiais. As cenas de luta são impagáveis, com destaque especial para o confronto do Aranha com o Lagarto na Biblioteca da Universidade (aproveite também essa cena e veja o responsável por você está ali, no cinema, Stan Lee). Esse quesito é uma tremenda covardia, pois a tecnologia estará sempre a favor das novas produções, seria mais ou menos como comparar o primeiro King Kong com o último dirigido por Peter Jackson. Resolvemos deixar empatados e não colocar nos autos este embate.
O filme: O espetacular Homem-Aranha é melhor do que o terceiro da série do Sam Raime, é tão bom quanto o primeiro da trilogia, mas, perde para o segundo. Com certeza vale o ingresso, o Aranha está hilário, assim como ele tem que ser. As cenas de ação foram muito bem construídas e o roteiro, apesar de não apresentar nada espetacular, como o nome do filme sugere, convence alguns fãs, mas, em uma avaliação desprovida de qualquer sentimento de saudosismo ou partidarismo em relação ao antigo diretor, eu ainda ficaria com o Homem-Aranha 2 como a melhor adaptação já feita do herói mais emblemático da Marvel.