Roleta na Estrada
Fazia exatamente
cinco anos que eles repetiam aquilo. Claro, não todos os trezentos e sessenta e
cinco dias de cada ano – assim, daria muita chance à polícia local de
apanhá-los. – No entanto, esse detalhe não deixa de reconhecer a verdade desta
expressão: há cinco anos eles vinham repetindo aquilo, e se divertindo bastante
com isso. Como faziam para não ser apanhados? Simples, a brincadeira de fato só
rolava poucos dias dentro de cada ano. E, claro, nunca rolou na mesma data
seguida em nenhuma dessas vezes. Repetir datas (criteriosamente, como se fosse
um relógio suíço) era coisa para imbecis, ou serial killer, que teima
estupidamente em reproduzir seus crimes utilizando sempre a mesma fôrma de
bolo; um mesmo fatídico dia de cada ano, ou o mesmo tipo de mulher a ser
esquartejada; gordinha, prostitua ou louras peitudas.
Entretanto,
para Ismael e Gabriel, (nomes parecidos, é certo, apesar dos rapazes não serem
irmãos, apenas primos), o dia em si não tinha muita importância. O quê eles
escolhiam para fazer neste dia é o que contava de verdade.
Já
se imaginou morando numa cidadezinha pequena (uma merdinha de mosca perdida no
deserto), onde nada de substancial acontece? Sabe o que é não conseguir andar
dez passos sem ter que cruzar com um rosto conhecido? As mesmas pessoas
monótonas de sempre com suas vidinhas medíocres e entediantes? Já se imaginou
num luarzinho onde a coisa mais interessante para se fazer aos domingos é
vestir aquela calça branca e amarelada nos fundos e meter o pé na estrada que
leva à igreja?
Sábado
chega e lá está você sentado nos mesmos barzinhos de bebidas quentes de sempre;
as minúsculas lanchonetes que seus pais te levavam ainda do tempo em que você
cagava nas calças. E o resto da semana, então? Segunda-feira ter que ir à
escola e estar obrigado a ouvir aquelas mesmas vozes repetidas todos os
amaldiçoados dias e receber esculachos das mesmas professoras que também foram
às mesmas professoras dos seus pais. É terrível, não queira experimentar!
Ismael
e Gabriel despertaram para essa infeliz e excruciante realidade quando
completaram treze anos (é, eles também nasceram no mesmo dia).
Em
dezessete de março de 1942, os primos chegaram aos trezes anos. Idade em que os
pelos dos rapazes começam a despontar embaixo das axilas e a voz vai dando a
ideia de como ficará até o fim da vida. Diferente dos gêmeos do velho Clayton,
dono da farmácia, que ganharam uma motocicleta envenenada cada um, para os
primos aquele fora o pior dia de suas vidas. Suas mães os levaram para tomar
sorvete (o mesmo sabor de sempre; chocolate com calda de chocolate) e, sem elas
notarem o quanto aquilo tudo era ridiculamente ultrapassado e adocicado demais
para rapazinhos já crescidos como eles, depois de pagarem ao caixa da
sorveteria, as mamães ainda insistiram para que os meninos tirassem fotos,
juntinhos.
Alana,
a gata mais quente do oitavo ano, ficou rindo de longe, na praça, enquanto
aquele imbecil do Brendan apontava aquele dedo ossudo para eles e ficava
tirando sarro, imitando as poses que as mamães de Ismael e Gabriel pediam para
que os dois fizessem.
malditoBrendanmilvezesmaldito!
Caso
algum psicólogo pago pelo estado fosse separado para definir o perfil
psicológico dos rapazes depois daquele dia, provavelmente ira se valer daquela
tarde de fotos para fechar o seu diagnóstico como um típico caso de psicopatia
compulsiva provocada pelas risadas irritantes daquele esqueleto do Brendan.
Talvez por isso, o Brendan tenha sido o primeiro a desfrutar das diabruras
dos primos.
Na
semana seguinte à tarde de fotos na sorveteria, Brendan se ofereceu para levar
Alana em casa após a aula. Era coisa de cinco e
meia, e o sol se escondia por detrás de carregadas nuvens que mais pareciam
fumaça de caminhão com motor batido.
Os
primos, sentados em suas bicicletas enquanto acompanhavam o casalzinho andando
de mãos dadas pela calçada, tiveram pela primeira vez na vida o que eles
chamariam futuramente de “comunhão telepática”– é uma daquelas coisas
legais que acontecem uma vez a cada dez trilhões de anos em que você fala em
cima da bucha exatamente a mesma palavra que a outra pessoa que está falando
com você, saca?
Pois
bem, no caso de Ismael e Gabriel, eles não precisaram falar nada, não. Apenas
pensaram, depois trocaram um par de olhares, bateram o punho um contra o outro
e, como uma dupla de bailarinos do bolshoi, curvaram suas bicicletas ao
mesmo tempo para a esquerda, saindo da estrada e entrando num atalho
que os dois sabiam exatamente aonde ia dar: a casa de Alana.
Taciturnos durante o trajeto, sabiam exatamente o que iam fazer. A menina
de cabelos vermelhos e ondulados não tinha nada a ver com o que eles haviam
passado na tarde do sorvete de chocolate. Ela rira, é verdade – não, ela se
esbaldara de rir, faltou pouco mijar nas calças – mas, ela não tinha culpa nenhuma naquilo. não passara de uma reles espectadora do diversões grátis faça os
outros de otário Brendan Show. Se o seboso não estivesse àquele dia na
praça, ela não teria rido, ela não teria nem percebido que eles estavam ali. A
morte dos milhões de judeus não era culpa dos soldados nazistas, e sim de Hitler. Se os primos também já estivessem em 1974,
reforçariam seus argumentos dizendo que o culpado pelas praias vazias da
Califórnia àquele verão não tinha sido o Tubarão, e sim Steven Spielberg. Quem
ganha o prêmio não é quem gargalha com mais força na plateia, e sim, o melhor
comediante.
E
você é um excelente comediante, não é Brendan?
Alana se despediu
do ossudo à porta e o asqueroso até recebeu um selinho de “valeu pela
companhia”. Depois, voltou pela mesma estrada que seguira, assobiando
desafinado a melosa september in the rain de James Melton. Os primos
esperaram que ele se distanciasse um bom pedaço da casa da menina, e, ao virar
a curva que dava para o lago dos sapos, pisando despreocupado sobre o chão de
folhas, saíram da trilha de dentro do mato, fechando-o; um pela frente e o
outro por trás. Não queriam matar o Brendan, não, ainda eram muito jovens para
terem esse tipo de ideia. Profissionalismo mesmo só quando estivessem de maior.
Entretanto, como tinham intenção em deixar o esqueleto humano vivo, ele poderia
dar com a língua nos dentes mais tarde, e os primos estariam em sérias
enrascadas. Não, eles iriam se divertir bastante com o Brendan, mas o artistazinho nunca saberia quem eles eram. Você pensa que os primos não pensaram nisso, também? Usaram as camisas para cobrir o rosto,
deixando apenas os olhos de fora, como máscaras.
Os primos saíram do mato ao mesmo tempo e fecharam Brendan, um pela frente e outro por trás. A distância era boa, coisa de dez metros. O rapazinho que gostava de fazer os outros rir ficou estupefato, virando o pescoço repetidas vezes para frente e para trás. As
mãos começaram a transpirar e tinha medo de olhar para os dois
esquisitos.
–
O-o que querem? – perguntou, sem reconhecer o som da própria voz que estava em
frangalhos.
–
Que nos faça rir, Brendan, só isso. – falou o que estava com a camisa preta no
rosto. Sua voz era abafada pelo algodão do tecido sobre a boca.
–
Como? O que disse?
–
Ahahahahahahaha! Ele é bom mesmo, bem que você avisou! – falou o que usava a
máscara branca.
–
P-por favor, eu só quero ir para minha casa.
–
É claro que você quer, Brendan, é claro que quer. – Máscara
preta.
–
Eu não tenho dinheiro na mochila – e a jogou. – Podem ver, se quiserem!
–
Brendan, conta uma piadinha aí, vai.
As
bicicletas foram se aproximando, lentamente. Os pneus cheios esmagando as milhares
de folhas secas no chão.
Brendan,
que nunca gostara de filmes de suspense, e, brilhante aluno de matemática que
era, rapidamente ponderou suas probabilidades: lago dos sapos à frente, malucos
com os rostos cobertos dos lados. A resposta parecia óbvia; arremeteu
desvairadamente para dentro da mata às suas costas, deixando para trás além da
mochila, as risadas aterradoras responsáveis pela sua primeira mijada nas
calças, àquele fim de tarde.
AHAHAHAHAHAHAHA!!!
As
lágrimas rolavam pela sua face enquanto o catarro amarelo como creme de
maracujá pendia para dentro de sua boca. O pé esquerdo começou a deslizar
dentro do tênis por causa da urina que descia pela perna debaixo da calça e se
empoçava ali. Isso o fez diminuir sua arrancada e patinar, com dificuldades. As
risadas estavam muito próximas agora, e ele, imprudentemente, resolveu olhar
para trás para ter a certeza de quanta vantagem ainda tinha sobre seus
perseguidores e encheu a testa contra um galho de árvore. Não doeu muito, não na
hora, mas o impacto fez seus pés levantarem e no instante seguinte ele estava
com as costas pregadas ao chão, e seus caçadores, zombeteiramente, caçoando
dele e o avistando de cima.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
–
Muito boa essa, Brendan! – falou o de máscara branca. – Pode repetir?
–
Está doendo, Brendan? A gente pode te ajudar em alguma coisa?
Brendan
chorava com as mãos no rosto. Anos mais tarde, ele repassaria aquela cena
diversas vezes na mente, especulando se teria tido alguma chance caso tivesse
tentado uma investida mais agressiva contra os dois mascarados. Não, sempre se
assegurava no final dos cálculos que sua reação foi a melhor possível; era muito franzino em relação aos dois, e não
sabia se eles portavam punhais dentro daquelas surradas calças jeans.
–
Acho que ele está com calor, primo, veja como transpira! – máscara branca falou.
– Vamos fazer o seguinte – o de máscara preta falava
com os pés bem próximos à cabeça do menino –, Brendan vai nos contar uma piada,
se a piada for legal, ele fica com a roupa, caso contrário... vai poder desfrutar sem nenhum empecilho da brisa da tarde, e quem sabe até dá um mergulho no lago dos sapos.
O que me diz, hein, Jerry Lewis?
Brendan
ficou apavorado, pois não sabia nadar, e, naquela hora, os rapazes viram-no fazer
a outra perna da calça marrom ficar preta; era a mancha molhada de urina que se
denunciava mais uma vez.
Não
precisa dizer que o resto da tarde traumatizaria Brendan para o resto da sua
vida, não é? O garoto que de fato até dispunha de algum talento para a comédia,
e era mesmo um bom contador de piadas, não conseguiu produzir nada de engraçado
naquela horripilante situação. E a cada piada insossa contada, recebia uma
série de uhuhuhuhu! como encorajamento para as próximas, e levava
algumas bofetadas nas orelhas. Depois que sua última meia foi arrancada, máscara branca falou:.
–
Humm! Que cheiro é esse? Não me diga que o bebê já fez xixi de novo!
–
Ahahahahahahah! Agora não tem jeito, não, Brendan! Vamos ter que trocar a
fraldinha, mesmo! – e removeram-no a calça de brim que a tia Ada lhe
confeccionara. Foi ai que os primos notaram a cueca cheia de bolinhas, tipo Tarzan.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
–
Essa nós vamos deixar, Brendan. Pô cara, tá muito legal!
–
Ei, olha o que eu achei! Uma moedinha de cinco centavos. Tava no bolsinho do
Brendan! Posso ficar pra mim, Brendan, como lembrança?
O
menino colocava as mãos sobre os olhos. Já chorara todo líquido que seu corpo
poderia produzir e agora apenas tremia e soluçava.
–
Psiu! Um conselho, Brendan – o de máscara preta se agachou, ficou de joelhos e
agarrou a cabeça do menino. Falou tão colado ao seu ouvido que Brendan
sentiu-lhe a umidade da saliva pregada ao algodão do tecido em sua boca. – Acho
melhor ir para casa agora antes que comece a chover – riscando o céu como serpentes,
os raios também avisavam que, pelo menos naquilo, aquela coisa estava certa. –
Já esteve fora de casa durante um temporal, Brendan? Já viu que tipo de animal
pode sair do mato e ganhar a estrada? Vá pra casinha, agora, seu merda.
–
Ahahahahahahaha! Esse Brendan, ele mata qualquer um de rir!
Subiram nas
bicicletas.
–
Valeu, Brendaaaaaaaannnnnn! – falaram uníssono, e sumiram para dentro da mata
com as roupas e o tênis de Brendan à mão.
Aquele
fora o primeiro ano dos primos.
Nos
anos seguintes, em datas esporádicas, vez ou outra eles trocavam aquele mesmo
olhar conluiosamente, saíam de fininho do meio da rapaziada, e colocavam as
mesmas camisas preta e branca no rosto para exercitarem o que de pior havia no
coração de cada um deles.
Com
o tempo foram amadurecendo, claro, e a seriedade das brincadeiras foi se intensificando.
Aos
quinze, ganharam uma motocicleta indian no sorteio do supermercado Max,
onde a mãe de Ismael colocara mais de duzentos cupons arranjados
clandestinamente pela sua tia que trabalhava como caixa da loja. Os primos
agora tinham asas, e fora justamente naquele ano que eles findaram o primeiro ser vivo de suas carreiras; o
canário de estimação de Wanda, a gorda.
O
bichinho cantava tranquilo em sua gaiola no fundo do quintal quando foi
surpreendido por dois rapazes musculosos com o dorso à mostra e com os rostos
cobertos por malhas. Eles começaram a derramar um líquido estranho sobre o
pássaro, que a principio pensou tratar-se de água – às vezes sua dona o
banhava, nos dias mais quentes, principalmente. – Mas a ave percebeu que a água
que ele bebia e que às vezes Wanda o banhava, não tinha cheiro de nada. E
aquela água tinha um forte odor que o deixava embriagado.
Quando
Wanda saiu do banho, ainda com uma toalha pequena enrolada na cabeça e outra
cobrindo o volumoso corpo de mais de vinte quilos sobressalentes, viu seu
melhor amigo em chamas voando desesperado dentro da infernal gaiola de ferro
que ela lhe comprara àquele ano como presente de aniversário.
A
menina passou duas semanas sem ir à escola. Os primos, em companhia solene
juntamente ao restante da turma, foram visitá-la em casa, e lhe deram um abraço
quando lhe desejaram forças para que se recuperasse logo.
Aos
dezesseis, eles já eram os donos da estrada, e passaram a consumir drogas juntamente
com as inseparáveis cervejas. Iniciaram com a maconha, como a maioria de todo
mundo. O novo professor de teatro foi quem os presenteara, aquele viado.
E, claro, em retribuição a isso, nesse dito ano eles roubaram uma Polaroid do
supermercado Max, e registraram o docente em momentos intimamente
comprometedores com Sandoval, o cortador de grama do colégio.
No
dia seguinte, o banheiro dos meninos e das meninas da escola estava apinhado de
fotografias espalhadas do talentoso professor. O que ele fazia? Sorvia
gulosamente o picolé de Sandoval. A direção ficou sabendo dois dias
depois e além de Sandoval, Frederico Motta fora escorraçado da unidade de
ensino sob a justificativa de que jamais conseguiria impor respeito novamente aos
alunos.
Aos dezessete, a
polícia tomou conhecimento, e levou a sério pela primeira vez as denúncias do
povoado que relatavam acerca de dois rapazes em cima de uma moto, e de como
aqueles demônios haviam posto fogo em todos os carros estacionados fora da
igreja na véspera do natal.
No
mês de novembro de 1946 eles roubaram um Colt 45 cano longo e niquelado. Seus
olhos faiscaram à luz daquela belezoca. A partir daquele dia passaram a se
enfurnar dentro da mata depois que a vila estava dormindo para se empenharem na
prática de tiro. A luz do farol da motocicleta era utilizada para iluminar os
sapos que eles colocavam dentro das garrafas de leite como alvos improvisados.
Naquele período, os primos também foram promovidos de meros usuários para
revendedores da droga, e foi quando a grana começou a entrar de
verdade.
Já não mais colocavam os pés na escola. Alana
cresceu, e o corpo da ruiva respondera às expectativas. Não deu outra: estupraram-na
à beira do lago dos sapos outro dia quando ela voltava da aula.
Em
seu relato à polícia, a ruiva murmurava baixinho para que a enfermeira que
limpava o sangue da sua genitália não escutasse o que ela revelava aos
policiais; disse aos homens da lei que os rapazes não paravam de rir
enquanto a estocavam com seus membros dilaceradores e lhes perguntando se ela também não estava achando
aquela situação “engrossada”, e se ela tinha certeza de que não iria querer
depois um sorvete de chocolate para tirar o ardor de
dentro das pernas.
Tornaram-se
exímios atiradores, e no ano de 1947, ano em que completariam dezoito anos,
resolveram que era hora de amadurecer. Trocaram a motocicleta por uma linda
picape Ford 1940, cor vermelha, uma bala. Quando o relógio no alto da torre da
Igreja Batista anunciou três horas da madrugada do dia 18 de setembro,
municiaram o Colt 45 e começaram a ronda que seria decisiva para a vida deles.
Fizeram
uma aposta para ver quem ficaria com os papéis da picape, e único proprietário
da encarnada. Seis câmeras na arma, seis tiros; três para cada um,
alternadamente. Ismael e Gabriel iriam disparar três vezes, e quem errasse uma
única vez, teria que entregar a sua parte do Ford para o outro que passaria a
ser o proprietário exclusivo da caminhoneta. O negócio estava fechado.
Na
verdade, suspeita-se que inventaram a história da roleta somente para exercitarem o
tiro nalguma coisa que não fossem os sapos dentro das garrafas de leite.
Pela decisão da
moeda de cinco centavos que Gabriel ainda carregava no bolso da época do
Brendan, Ismael – o da máscara branca – deveria começar com os tiros. Uma
disputa de seis disparos. As regras também diziam que o adversário era quem
escolhia o alvo do concorrente, e, por obrigação, teria que ser alguma coisa viva, claro.
Com
os faróis da picape apagados, começaram a deslizar pela ruela da sorveteria. A
vila só dispunha de oito policiais que se revezavam em duplas a cada
turno de 12 horas. Àquela hora eles deveriam estar rodando perto do show de
música gospel na ponte da amizade, cento e vinte quilômetros de distância da
vila onde toda a mocidade tinha ido acompanhar aqueles farsantes evangélicos
vestidos de roupas folclóricas. E por isso mesmo aquele dia houvera sido o
escolhido pelos primos, toda a vila lhes pertencia agora, e eles poderiam
atirar no que quisessem.
Como
no gatinho de Ivone, por exemplo.
O
preguiçoso felino dormia tranquilamente sobre uma almofada acolchoada posta na
cadeira debaixo da varanda da casa da filha do pastor. Era um siamês, com
lindos olhos azuis, mas que naquele momento estavam fechados, coladinhos. O
bichano ronronava, talvez sonhando com um paraíso repleto de ratos suculentos e
assados e servidos em pratos de porcelana branca ao leite quente.
Pela
regra, Gabriel, o da máscara negra, era quem primeiro iria escolher. E ele
escolheu o gato. Ismael estendeu o punho fechado e o primo respondeu,
socando-o no ar. Antes de colocar seu talento à prova, Ismael deu um gole na cerveja
que haviam trazido para animar a festa e depois apontou o cano niquelado do
Colt 45 para o bicho dorminhoco. Mirou durante cinco segundos e puxou o
gatilho; o disparo foi um baque surdo, e Tomás, o gato siamês, transformou-se numa pasta vermelha e
marrom escuro a escorrer pelas gelosias da cadeira de vime. Os primos
gargalharam e aceleram a picape de faróis apagados enquanto acendiam-se as
luzes da casa de Ivone. Você tinha que está lá para ver a cara estúpida do
pastor quando ele abriu a porta e veio esfregando os olhos conferir que
estranho raio houvera sido aquele que caíra em sua varanda.
Atiçado
pelas gargalhadas dos rapazes e pelo ronco estridente da picape, o labrador de
Estevão, o açougueiro, teve a infeliz ideia de sair de sua casinha de cachorro
no quintal do comerciante e partir atrás deles, latindo e mostrando os dentes
da única forma que entendia ser ameaçador.
Ainda
com a mão ao volante, Gabriel olhou para Ismael e recebeu desse um aceno de
cabeça, indicando que sim, ele podia detonar aquele maldito canteiro de pulgas
ambulantes que vinha correndo atrás pelo retrovisor. Ismael passou o revólver
para o primo ao mesmo tempo em que se reclinava por cima do seu colo a fim de
assumir o volante da picape. Gabriel, gargalhando como um louco, colocou o
tronco para fora do carro e, virando para trás com as duas mãos empunhando firmemente
a coronha da arma (como nos filmes da máfia que eles assistiam no Drive-in),
estourou a cabeça do pesado cão, fazendo um buraco do tamanho de uma laranja
bem entre os olhos. Ismael ouviu o tiro e viu pelo retrovisor o cachorro
capotar três vezes pelo asfalto como um búfalo que tivesse sido abatido
nas savanas africanas.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Um
a um. Começaram bem.
Cruzaram a linha
que delimitava o limite urbano da vila e se lançaram à rodovia estadual com o
motor da picape girando a mais de cinco mil ciclos por minuto. O fogo
avermelhado que vomitava pelo cano do escapamento parecia o rugido furioso de
um foguete a caminho das estrelas. Liberdade, aí vamos nós!
Urravam
enlouquecidos e Gabriel elevava o revólver para fora da janela. Já experimentou
a indescritível sensação de possuir o toque de Deus nas mãos? Exalar apenas um
leve suspiro e assistir à vida se esvair de qualquer criatura que você quiser?
Somente escolher, apontar e pow! Já era?
A
vaca premiada dos Silva foi o terceiro alvo a mostrar as patas para o céu de
lua crescente àquela madrugada. A desproporcional produtora de leite pastava
tranquilamente dentro do pequeno cercado da família Silva rebolando as tetas
túrgidas e tendo o bezerro Teco logo atrás. O filhote implorava por mais uma
sessão de mamadas e correu para junto da mãe quando os faróis da picape caíram
sobre ele. Gabriel escolheu a gigantesca vaca como o próximo alvo e se
arrependeu logo em seguida; aquele era um alvo demasiadamente fácil, grande
demais, havia muita carne exposta ali.
Tarde
demais, falou Ismael. E, com uma das mãos tapando um olho, tirando um
sarrozinho em particular com o primo, meteu o dedo no gatilho, derrubando
impiedosamente a vaca que há dois anos vinha garantindo a escola dos filhos dos
Silva. Fácil demais. Obrigado, otário.
O
bezerro idiota começou a berrar e berrar, fuçando o corpo da mãe e dando
voltas, alucinado em torno dela. Você me deve essa, ouviu os olhos de
Gabriel implorar, e o primo, gargalhando, concordou com um aceno de cabeça.
Tiro certo. O bezerro se
tremeu todo como se tivesse levado um choque de alguma coisa invisível
e caiu esparramado sobre o dorso da mãe, o sangue dos dois se misturando aos
quilos de esterco do cercado dos Silva.
Tua
mãe era uma vaca, você sabia? Ahahahahahahahahah!
–
Voltamos à estaca zero. – Falou Gabriel enquanto enxugava as lágrimas de
alegria e enfiava o nariz da picape pela estrada plana da estadual. Só então
acendeu os faróis.
–
Ainda tem um tiro para cada um. – Tomou outro gole de cerveja e esvaziou a
terceira garrafa daquela noite.
–
Os próximos desafios devem realmente valer a pena.
–
É isso aí. – disse Ismael, e completou: – Mais o menos como aquilo ali.
–
Cara, você é mais louco do que eu pensava.
Estacionaram
o carro e Gabriel apagou os faróis.
Máximus,
o cavalo negro de Dom Gonzales, trotava soberano dentro da fazenda do famoso
traficante de drogas do estado. Foi Dom Gonzales, inclusive, quem iniciou os
primos no lucrativo comércio da revenda de cocaína. Era também o perigoso
traficante o responsável por oito dentre dez jovens que davam entrada nas
clínicas de desintoxicação por aquelas bandas, e nove, dentre os que davam
entrada no cemitério.
Dom Gonzales
simpatizara com os primos desde o primeiro momento em que os vira. O gangster
era conhecido pela capacidade de farejar potenciais à distância. Ah, ele
farejava sim. E os dois rapazes não lhe cheiraram a outra coisa senão ouro. Ouro
bruto e novo, e que pedia para ser lapidado. Jamais havia encontrado tamanha
fúria e frieza em duas criaturas como aquelas. Ainda eram bastante jovens, a
bem da verdade, mas o visionário senhor do tráfico não tinha dúvidas em quanto
os primos ainda poderiam lhe oferecer quando amadurecessem. Ele já havia
informado ao seu adjunto que aqueles dois seriam seus assassinos de confiança,
acionados somente para solucionarem os casos mais escabrosos; juízes, delegados
de polícia, e promotorezinhos metido à besta.
Infelizmente
para Dom Gonzales – e mais especificamente naquela madrugada para seu belo puro
sangue, Máximus –, os primos possuíam uma característica que as habilidosas
narinas do gangster não puderam captar; eles eram loucos, suicidas. Não no
sentido restrito da palavra, como se quisessem tirar a própria vida. Não, nada
disso. Eram suicidas por não se importarem com nenhuma forma de
consequência, compromisso ou lealdade (lembram-se do professor de teatro?).
O
dono da maior rede de tráfico do estado não sabia, mas seus futuros pistoleiros
eram almas insanas, fiéis unicamente a si mesmas, e ao cano do Colt 45.
Estacionaram a
picape à distância de cinquenta metros da fazenda de Dom Gonzales e deram uma
boa olhada. A casa deveria ter mais de dois metros quadrados de extensão e
era circundada por uma maciça cerca de madeira. Havia três carros
estacionados dentro do cercado, e nenhuma luz acessa dentro da casa.
Ismael arrancou a
tampa da quarta garrafa e meteu o gargalo na boca, estava quente e tinha gosto
de urina, mas a cocaína a fazia descer doce como mel.
–
Cara, você é mais louco do que eu pensava – repetiu Gabriel.
–
E os homens do chefe? Será que estão dormindo a essa hora?
–
Danem-se os homens do chefe. – falou Gabriel.
Ismael teve um ímpeto de riso e se engasgou com a
cerveja, ambos gargalharam.
–
É assim que se fala, primo.
–
Dane-se o chefe – repetiram juntos, e tocaram os punhos fechados no ar.
Ainda
com os faróis apagados, Gabriel engatou a primeira e quando tirou o tênis do
pedal da embreagem, o motor da picape disparou, jogando o carro para frente e voando direto para cima do cercado. Os cavalos
correram assustados no momento em que as madeiras foram arrebentadas, e no
instante seguinte o Ford já estava dentro da propriedade do homem mais perigoso do estado.
Foi
tudo muito rápido: o ponteiro da picape atingiu cento e cinquenta quilômetros
por hora e, apesar do possante animal estar correndo a princípio a uma
distância confortável de seus perseguidores, o alcance em pouco tempo foi inevitável. Ismael tirou o Colt 45 do cinto e o rolou no dedo pela alça do
gatilho, como Durango Kid no cinema. Em meio ao barulho
ensurdecedor do motor e os solavancos desesperados de Máximus, ele conseguiu
ouvir o primo bufando: – vai, vai, mata esse pangaré! mata esse pangaré! Ismael esperou o
carro emparelhar com o garanhão negro e o acertou em cheio na cabeça, de lado.
A violência do disparo jogou a cabeça do animal para o lado como se ele tivesse
sofrido um poderoso soco invisível, suas patas dianteiras se dobram e o resto do seu corpo continuou se projetando para frente, partindo-lhe a espinha ao meio. O cavalo de
trezentos mil dólares rolou cinco vezes
sobre o gramado e suas pernas pararem de espasmar, finalmente convencidas de que estavam mortas.
Ahahahahahahahahahahahaha!
Maaaaaaaassa!
–
Três a dois! Três a dois! – berrava Ismael e erguia os dedos, simbolizando a
vantagem que tinha agora em relação ao primo.
Arrebentaram novamente a
cerca de madeira e voltaram à estadual em duas rodas, brigando com
o volante do carro para manter os pneus sobre o asfalto e o espancando o câmbio
das marchas a ponto de quase parti-lo: terceira, quarta, quinta, 120km\h.
Foda-se
o chefe! Foda-se o chefe! Foda-se o chefe!
A
esposa de Gonzales surgiu na janela do primeiro andar e, após fechar a fina
camisola, forçou os olhos o melhor que podia para tentar enxergar além do que
sua retina lhe permitia. Dois faróis vermelhos como fogo sumiam no horizonte.
Olhou para baixo e viu os homens de seu marido saírem apressados pela porta de
vidro da cozinha da casa, alguns ainda de meias e cuecas, todos de arma em
punho. Somente duas horas mais tarde, quando o sol aparecesse, eles veriam o
verdadeiro saldo do atentado; o cavalo Máximus coberto de urubus no meio do
gramado da fazenda. Dom Gonzales perguntaria quem estava no turno a hora em
que ouviram o disparo. Roberto só dormira por acreditar que ninguém era
estúpido o suficiente para tentar invadir a casa do seu chefe. Afinal, o homem
tinha passado mais pessoas pelo portão do céu do que São Pedro. Sua
errônea suposição contribuiria para que os urubus de Máximus tivessem outra opção
de café naquela manhã.
AHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
–
Bate aqui meu irmão, bate aqui! – gritava Ismael, oferecendo a palma da mão
para o primo. – Quem é o bom aqui, hein? Quem é?
– O bom sou eu. – Respondeu Gabriel. – Escolha o
próximo alvo, e quando eu acertar, a gente volta novamente à estaca zero, e
deixa a disputa para outra noite, já tá amanhecendo e preciso dar meu último
disparo.
–
Ah! Só não acaba se você acertar, meu amigo, se você acertar! –
enfatizou bem Ismael, fazendo questão de pronunciar separadamente a pequena
partícula que era uma condicional indicativa que o documento do carro poderia
passar a ser somente seu dentro de pouco tempo.
–
Sabe que não vou facilitar pra você como fiz com o bezerro dos Silva,
não sabe? – debochou.
–
Escolha o que quiser – disse Gabriel. – Escolha o que quiser e da cá o
revólver.
Ismael
abriu outra cerveja com os dentes e cuspiu a tampa fora. O dourado belo do sol
irradiava acima dos montes. Os primos deveriam ter rodado perto de cem
quilômetros desde que deixaram a vila. A estadual cada vez mais lhes chamava
para desfrutar do sabor da liberdade.
Uma
majestosa águia grasnou acima deles e os primos viram-na cruzar a estrada e
pousar suavemente sobre uma pedra ao lado da rodovia.
Ela
trazia um coelho imprensado entre suas garras e começava a dilacerá-lo com o
bico, rasgando-lhe a carne branca e engolindo-a em enormes tachos.
A cena era poderosa, e realçava singularmente a seleção natural do mundo, ela colocava cada indivíduo no seu respectivo papel, apartando sem melindres o preto do
branco. Ali estava a caça e o caçador, o forte e o fraco. Aquela era uma das
poucas verdades absolutas do universo: uns haviam nascido para devorar e
outros para serem devorados.
Com
o carro desligado no meio da estrada e dividindo gole a gole a última cerveja
que restava, encostaram-se aos bancos de couro da picape e ficaram assistindo extasiados
à ave fazer sua refeição matinal.
A
águia elevou o olhar para os primos e pareceu não se intimidar com a súbita
curiosidade deles. Sem nenhuma cerimônia, rasgou a barriga do coelho e
tascou-lhe um pedaço do fígado, engolindo-o em segundos.
–
Que beleza, não é? – falou Gabriel.
–
Hum-hum – respondeu Ismael, e provou mais um gole da bebida.
O sol agora
brilhava por detrás das asas do pássaro e ele limpava o bico entre suas penas
de cores variadas, continuava indiferente ao par de homens que lhes admirava à
distância. Estaria bem alimentada até a noite, quando alçaria voo novamente à
procura de outra presa. Isto é, se eu permitir, pensou
Ismael.
Gabriel
arrancou fora a máscara negra e passou a mão pelos cabelos, embaralhando-os
ainda mais. Parecia extasiado pela plumagem selvagem do pássaro e lentamente viu a coronha do revólver oferecida por Ismael tomando forma a sua frente.
Sorriu.
–
Sua vez, primo. – falou o outro.
Gabriel
olhou-o e lágrimas cintilaram nos seus olhos, profundamente agradecidos por tão
honrosa tarefa. Pegou a arma com delicadeza das mãos do primo e a beijou, sentindo o gosto de pólvora e o ardor nos lábios pelo contanto
com o cano quente e ainda insaciável do revólver (apesar das cinco vidas já
ceifadas àquele fim de madrugada).
Matar
a águia e ficar quites com Ismael – pensou no ato. Mas aquilo
significava mais do que isso; até então eles só haviam matado coisas que
rastejavam sobre quatro patas, animais domésticos, bichos sem importância.
Aquela águia seria o ultimato para a liberdade decisiva, ela era a bola
derradeira na caçapa que lhes daria uma guinada de 180 graus nas regras da
natureza, transformando o caçador em caça. Quem sabe após aquele disparo não
voltassem à casa de Ismael onde guardavam quilos de munição e depois de
recarregar o revólver não fossem bater um papo com Dom Gonzales. Sim, cara a
cara, e meter um tiro bem no meio daquela testa reluzente de corno filho da
puta. E com um detalhe, bem na frente de todos os seus comandados?
Ah! Talvez
aqueles delírios fossem resultado da cocaína que começava a lhes fritar o
cérebro. Porém, os neurônios explodiam, e a consequência daquele ato se
desenhava bem ali à frente deles. A inesperada e corajosa atitude os promoveria
a novos chefes do tráfico na vila, e quiçá, em anos vindouros, do estado e do
país.
Do
mundo! – falaram juntos, e gargalharam, desfrutando novamente daquela
nostálgica e inusitada sensação de comunhão telepática que os acometera no dia
da brincadeira com Brendan, às margens da estrada da casa de Alana.
Após
um momento de silêncio sacerdotal, Ismael falou:
–
Acha que é possível? – e lançou ao primo seu olhar inquisidor.
Espiaram
a águia; ela devia medir dois metros de envergadura de uma ponta a outra da
asa.
–
Fica olhando, seu babaca. – respondeu Gabriel, sorrindo eletrizado, como uma
criança.
A
águia levantou o pescoço e mirou os dois, como se imaginando o que lhes passava
na cabeça àquela hora.
Gabriel
enxugou as lágrimas que rolavam dos seus olhos e apontou o cano do Colt para a
gigantesca ave. Se ela entendeu o que aconteceria em seguida, os primos não
desconfiaram. Ismael, apesar de saber que o carro seria inteiramente seu caso
Gabriel errasse, de repente pegou-se torcendo para que o primo tivesse êxito, sim,
e espalhasse os miolos daquela ave de merda sobre o mato mirrado ao redor da
estrada. Acertar a águia significava abrir-lhes as portas para o mundo. Sorria
por dentro, e sua alma gritava, Gabriel podia ouvi-la, sério: vai logo, mata
essa desgraçada! Lembrou-se dos tediosos domingos na igreja, dos barzinhos
no sábado, das professoras matronas. Lembrou-se do choro acovardado de Brendan,
do canário de Wanda em chamas na gaiola, da carne macia e molhada de Alana. As
lágrimas desciam, o delicioso assobio do vento sibilava e invadia as janelas da
picape estacionada.
–
Pronto para ter o mundo aos seus pés, primo? – perguntou a Ismael, baixinho.
–
Mata essa desgraçada de uma vez! – respondeu sorrindo por entre os dentes.
Gabriel
puxou o gatilho.
O
som ensurdecedor provocado pela arma ecoou se repetindo diversas vezes até se
perder no longínquo horizonte da estrada. Fora um tiro perfeito; não deixou o
cano tremer muito – como os melhores atiradores fazem –, e nem recuou a mão
após sofrer o coice natural da arma provocado pelo projétil cuspido e sendo
arremessado furiosamente à velocidade de 400 quilômetros por hora. Porém, para
infortúnio dos dois aspirantes a assassinos, a águia voo, e teve apenas umas
das poucas penas da cauda atingidas pela bola de fogo que passou raspando, mas
que se mostrara ineficiente diante do instinto de sobrevivência do pássaro que
o alertara milésimos de segundos antes do dedo de Gabriel causar pressão sobre
o gatilho.
A
rainha de todas as aves grasnou em repúdio à intenção dos dois pequeninos
homens e voou por sobre suas cabeças, ganhando cada vez mais altura e se
distanciado dos reles bípedes.
–
Nãããããããããooooooooo! – esbravejou Gabriel, batendo repetidas vezes a testa de
encontro ao volante do Ford. – Maldiçãomilvezesmaldição! – a buzina do
automóvel respondia à cada investida, quebrando intercaladamente a quietude
sepulcral da estrada deserta.
Ismael
abaixou a cabeça e ficou olhando para os próprios sapatos, sem pensar em
absolutamente nada pela primeira na vida desde que aprendera a comer sozinho
sua própria sopa de aveias. Ficou ouvindo o primo chorando ao lado e enchendo
a direção do veículo de muco nasal. Pensou em tentar amenizar-lhe a dor,
deslizando-lhe as mãos sobre os cabelos, mas recuou no derradeiro
instante; toques daquela natureza eram coisa de viado, e gestos de piedade só
serviriam para encher-lhe ainda mais o coração de fúria.
Não
se sabe por quanto tempo permaneceram ali, de cabeças abaixadas e chorando.
Gabriel a lambuzar o volante do Ford com seu catarro e Ismael olhando e
contando repetidas vezes o número de voltas que seus cadarços davam nos buracos
do tênis antes de sair e entrar novamente. Estava
como que hipnotizado e imaginou mais uma vez que a cocaína estava de fato
canibalizando o seu cérebro. Subitamente, outro som foi percebido além das
lamúrias de Gabriel; um menino, de nove ou dez anos talvez, pedalava
displicentemente à distância de quarenta metros à frente da picape deles.
Os
primos ergueram suavemente a cabeça e avistaram as costas do menino sobre a
bicicleta, deduziram que ele havia saído de dentro do capinzal nalguma daquelas
várias estradas de areia que cruzavam a estadual e agora partia para casa, tão
inocente e sozinho.
Os
primos cruzaram aquele velho olhar que cada vez mais se tornava uma constante entre eles e Ismael, desta feita, pareceu não concordar com as intenções que pairavam no
ar, apesar de ele mesmo ter pensando naquilo no mesmo instante em que avistara
o garoto.
–
Não, Gabriel! – falou. – Cara, nem pense nisso! É só um guri!
–
E Deus lhes proverá o sacrifício! – disse-lhe Ismael, evasivamente. Sorria e
arregalava os olhos, eles estavam vermelhos, mas não era somente por causa das
lágrimas. Ismael também achou que o pó estivesse reduzindo a
capacidade de raciocínio do primo, triturando-lhe de vez a sanidade.
–
Lembra-se das histórias de religião, no primeiro ano? – perguntou Gabriel,
enquanto passava o braço da camisa para enxugar o nariz. – Quando Abraão saiu
para caçar com Isaque, seu único filho, e o menino não parava de encher o
saco do pai, perguntando como um papagaio de pirata: “Pai, onde está o cordeiro
que vamos sacrificar a Deus, pai. Onde está o cordeiro?”
–
Cara, liga a porra desse carro e vamo simbora. – Falou Ismael, sem querer
dar-lhe ouvidos.
O
primo, agora engrossando a voz na tentativa de interpretar o patriarca
bíblico, falou:
– “Não se
preocupe, meu filho Isaque, Deus proverá, Deus proverá”. – e,
apontando para o garoto que pedalava sobre a bicicleta, completou o que
o outro já sabia: – Taí o sacrifício Ismael, meu velho, Deus
p-r-o-v-e-r-á.
–
Você tá maluco! – retrucou. – Acabou a disputa, e você perdeu a aposta, meu
caro. Acabaram-se todas as balas, esqueceu?
–
Não, não esquecei – e bateu com as duas mãos sobre o volante do carro.
Repetindo num crescendo – Não, não esquecei! – Seus dedos esticavam o catarro
pregado ao volante do veículo e os globos oculares faiscavam.
–
A gente não vai fazer isso, cara. – falou Ismael, e tocou a mão do primo
que já estava para dar a partida na caminhonete. Gabriel deu-lhe um chega pra
lá e girou a chave na ignição.
A
princípio, o motor velho do Ford rangeu, cuspiu, como se não quisesse pegar,
mas depois que os lábios irados de Gabriel o amaldiçoaram três vezes seguidas,
o bicho respondeu; berrando como um touro enfurecido e expulsando fumaça por
todos os buracos. Ele também já estava pronto para matar.
Num
último ato de desespero, Ismael tirou a moeda de Brendan do bolso e falou aos
berros para Gabriel que já engatava a primeira e tirava o pé da embreagem,
fazendo a carroceria da picape saltar e começar a devorar a estrada.
–
A moeda do destino tá na minha mão, entendeu, cara? – falou Ismael. – Se der cara, o
menino vive. Coroa, vai para o buraco. O que acha?
–
Dane-se a moeda – respondeu Gabriel, e gargalhou.
–
Como é?
–
Isso mesmo que você ouviu, dane-se a moeda, dane-se Dom Gonzales, dane-se o
destino! Ahahahahahahahahaha! E pisou fundo no acelerador, avançado como uma
flecha certeira para o pequeno ciclista solitário.
Ismael
jogou as mãos na cabeça, rindo também, mas achou que talvez fosse pelo efeito
da droga, aquilo não tinha nada de engraçado. Meteu os dedos entre os cabelos e
começou a tentar arrancá-los a fim de provocar alguma dor a si mesmo que o
despertasse daquela contagiante loucura.
Assustado
pelo ronco do motor que se aproximava, o menino pela primeira vez pareceu
perceber que um carro desgovernado avançava alucinadamente em sua direção.
Talvez por ainda não dispor de malícia suficiente para entender o que se
passava ou simplesmente por pura educação de trânsito, saiu como um raio da
linha do veículo e se jogou no acostamento da via estadual, deixando cair as
flores que conduzia na cestinha de sua bicicleta e permitindo que a máquina da morte passasse por ele
para depois frear bruscamente logo à frente. O incômodo cheiro de pneu queimado
se levantou no ar.
O
garoto pensou em soltar um palavrão contra aquele motorista desatencioso que
quase lhe tirara a vida, mas lembrou-se de que sua mãe não gostava de palavrões
e de que também não conhecia nenhum.
Ficou
respirando apressado e segurando-se no guidão da bicicleta. Suas pupilas quase
estouraram quando viu a picape fazer a manobra no meio da estrada, cantando
pneu novamente, e começar a acelerar de novo, desta vez intencionalmente por
sobre o acostamento, em sua direção.
Seu
coração congelou. Saiu abruptamente da rodovia e ganhou a primeira rua de areia
que tangenciava a estadual. Agora pedalava desesperadamente para salvar a
própria vida sem entender o que havia feito de errado contra aquele possível motorista
maluco. A picape abandonou a pista de asfalto e entrou como um míssil dentro da
estradinha envolta pelo capim alto. Agredia furiosamente a estrada de terra e
ia deixando para trás uma onda gigantesca de poeira e partículas
de pedras que aumentava à medida que o nariz do veículo se aproximava do pneu
traseiro da bicicleta do menino
Ismael
viu quando a criança acelerou os pedais como pôde e o previsível aconteceu; a
corrente não suportou a tração com que era forçada e se quebrou, fazendo a
criança cair e rolar no meio da estrada. A caminhonete agora parecia achata ao
chão de tão rápida que se aproximava. Ismael olhou de relance para o
velocímetro, ele havia colado na extremidade direita. Num último gesto de
apelo, chegou mais uma vez a tocar o braço do primo, como quem dizia: você
realmente não precisa fazer isso, é só um guri. Mas Gabriel novamente
afastou-lhe a mão e firmou ainda mais as garras ao volante, apertando-o ao
ponto dos dedos perderem a cor nas articulações. O assassino ainda se adiantou
um pouco mais à frente – como fazemos quando estamos vendo algo interessante em frente à televisão e queremos ter a certeza de que não vamos perder nenhum detalhe
daquela cena épica.
O
menino, estúpido, ao invés de se jogar para dentro do capim alto e tentar
livrar sua pele, teve a maluca ideia de voltar engatinhando para recolher as
últimas flores que tinham caído da cestinha da sua bicicleta. Num átimo de
tempo, a luz do sol iluminou aquele pequeno rosto e Ismael pode conferi-lo de
perto; era incrivelmente belo, apesar de estar sujo por causa do pó da estrada
e das lágrimas que agora rolavam através de brilhantes olhos azuis.
Pela primeira vez Ismael sentiu piedade por alguma coisa neste
mudo e pela primeira vez na sua vida o menino experimentou odiar alguma coisa
de verdade em sua vida.
A
distância agora não era mais que 20 metros; isso significava menos de meio segundo
para o choque. Ismael fechou os olhos, Gabriel arregalou os seus, o menino
escondeu o rosto entre os braços e enlaçou os joelhos. Seu último pensamento
antes da inevitabilidade da colisão: desculpa pelas flores, mãe.
Eram
sete da manhã quando o grupo de jovens da vila voltava do show de música gospel
que havia varado a madrugada na noite anterior nas proximidades da ponte da
amizade distando cento e vinte quilômetros da vila, vindo pela estadual.
Júlio e Silas, a dupla de policiais escalada para acompanhar os meninos
durante o evento, adiantava-se à frente dos carros para evitar ouvir mais
daquela tediosa música country que passara a noite azucrinando-lhes os
ouvidos. Os dois amigos não viam a hora de enxergar a porta do posto policial,
passar o serviço para os rendeiros e tomar uma ducha ao chegassem às suas casas,
quando seriam abraçados pelos filhos e pelas esposas. Entretanto, seus olhares
foram atraídos para uma estranha fumaça que se denunciava a alguns metros de
dentro do capim alto, bem ao lado da estrada principal por onde vinham
seguindo.
–
Mas, que diabos é aquilo? – perguntou Silas, tirando o braço para fora da
janela do carro e mostrando ao amigo a fumaça negra que ganhava o céu azul de
nuvens brancas. Mas nem era preciso apontar, Júlio também já a avistara e se
preparava naquele instante para fazer-lhe a mesma pergunta.
Instintivamente,
a viatura policial guinou para a esquerda sem avisar para o comboio de carros
que vinha atrás, provocando um inesperado iiiiiiii por causa dos pneus
derrapando sobre o asfalto e arrancando um urro de emoção da galera jovem que vinha logo em seguida.
Os
oito carros pararam brutalmente, deixando várias tiras de asfalto na rodovia.
Os jovens motoristas enxugaram o suor do rosto e deixaram escapar um silvo de
alívio, satisfeitos consigo mesmo por terem evitado um acidente e brecado os
veículos à distância de um dedo ente cada um. As moças, com suas calças boca de
sino tremulando ao vento, pularam pelas janelas dos carros e seguiram a pé
dentro do matagal, tapando o nariz para não respirar a poeira que havia sido
levantada pela viatura da polícia que já estava parada mais à frente.
Chegando
o mais próximo possível daquele monte de metal retorcido em chamas, os
policiais desceram da viatura e entreolharam-se. Silas tirou o quepe que
encobria os últimos fiapos de sua careca quase totalmente exposta e foi
conferir de perto aquilo que outrora havia sido uma picape Ford 1940. Ela
estava rasgada ao meio, bem no centro, e quase que totalmente da cabine à
capota. Faltara coisa de uns sessenta centímetros para dividi-la perfeitamente
em duas metades iguais. Era como se tivesse colidido com um meteoro, ou uma
locomotiva. – Não, uma locomotiva a teria achatado, e não dividido a condenada
ao meio daquela forma. O mais provável seria um míssil, daqueles bem finos.
Júlio
se aproximou do companheiro e apontou para os dois corpos ocupantes do Ford
destroçado. Eles estavam esmagados pelas ferragens do veículo, cada um do seu
lado, como sardinhas enlatadas. Seus rostos eram totalmente irreconhecíveis por
causa do fogo que os carbonizara completamente.
–
Mas, que diabos aconteceu aqui? – perguntou Silas, e cuspiu em cima de uma das
calotas da picape que cintilava em brasas ao lado do capim gigante. A saliva
rapidamente evaporou, produzindo um sibilo semelhante a isso: ssssssss,
avisando que o guarda nem pensasse em por o pé ali se não quisesse ficar sem a
sola do sapato.
A
garotada havia abandonado os carros na estrada e agora se
acotovelava dentro do capim, curiosa por espiar aquela tragédia que era uma
novidade ímpar na vila pequena onde a maioria deles morava há dezoito anos e
tinha nas festas de comício as maiores agitações a cada quatro anos.
–
Afastem-se, vamos, afastam-se todos! – ordenou Júlio. – Não sabemos qual a
origem desse acidente. Pode ter sido coisa de outro planeta, e isso tudo aqui
deve tá cheio de tudo quanto é tipo de radiação. Voltem para os carros, agora!
Lana, a irmã mais
jovem da ruiva estonteante e de nome parecido, agachou-se dentro do capim e
colheu uma flor hortênsia. Olhou para o infinito mato crescido que parecia
encostar ao céu e ficou cheirando a flor, imaginando em seu curioso cérebro de
menina prodígio como ela (a flor) havia parado ali.
O
menino chegou à fazenda onde morava empurrando sua bicicleta com a corrente
quebrada. Pelo menos aquilo não era problema, já havia acontecido outras vezes
e seu pai sabia como consertar. O que nunca havia acontecido antes (com
certeza) era ter toneladas de metal se rasgando contra seu corpo como se fosse
macarrão cozido.
Ele se lembra perfeitamente de ter ouvido o carro vindo furiosamente para cima de si e de
ter enfiado as mãos na areia e fechado os olhos no último instante antes da
colisão. Sentiu o para-choque da picape se achatando no contanto com seu ombro
e o radiador explodindo em mil pedaços. Em seguida, o motor quente virou
chiclete e o eixo entre os pneus se quebraram como palitos de picolé. Quando abriu
os olhos novamente, não havia sido deslocado um centímetro de onde estava, sério!
Sua camisa estava rasgada e o chassi do veículo tinha se transformado em
dois, uma parte para cada lado do seu corpo, mostrando o interior maciço do
ferro niquelado como as colheres de prata que ele comia sopa em casa. Lembra-se
de ter se levantado suavemente sem saber o que deveras lhe tinha acontecido e foi naquela
hora que a gasolina que pingava sobre os restos do motor em chamas explodiu,
desembaraçando seus cabelos e causando-lhe um tremendo susto por causa do rugido da
combustão instantânea. Mas, por incrível que pareça, por mais que sua mãe lhe
tivesse alertado diversas vezes acerca dos perigos em se brincar com o fogo,
aquelas lindas labaredas não lhe fizeram mais calor do que o cobertor de flanela que ele dormia.
O
menino andou entre as chamas e viu os dois sujeitos que tinham atirado o carro contra seu corpo no meio dos destroços. Havia muito sangue saindo pelo nariz, boca e ouvidos. Estavam mortos. A pele do rosto deles se derretia como cera por causa das chamas do veículo. Foi nessa hora que ele
se convenceu que sua mãe não estava totalmente equivocada quanto aos
riscos do fogo.
Saiu andando de dentro das chamas e batendo as mãos nas pernas
para tentar salvar o máximo que podia da bermuda em chamas.
Ao
chegar à cozinha da fazenda, onde a mãe preparava o almoço, entregou-lhe meio
que sem jeito a meia dúzia de flores que restara das mais de cem que ele havia
colhido. Sabia que a mãe gostava de hortênsias; não, ela as
amava.
Porém, após ela
receber as flores com um sorriso, ela ficara inquieta. Perguntou-lhe o que havia
acontecido com suas roupas e que cheiro estranho de fumaça era aquele impregnando-lhe os cabelos. Agradeceu a Deus por não ter precisado mentir pra ela,
pois ao mesmo tempo em que lhe perguntava todas aquelas coisas, cheirava-lhe a
pele e torcia o nariz, e, sem esperar qualquer resposta, ordenou a ele que fosse logo tomar um banho.
O menino pegou
uma toalha limpa que secava no varal e se acocorou junto ao poço da fazenda
para fazer o que sua mãe havia pedido. Ali havia um balde grande com água e
ele foi derrubando poucos canecos sobre os cabelos e ensaboando-os, lentamente.
Ficou olhando o beija-flor que vinha toda manhã enamorar as rosas
silvestres que sua mãe cultivava no alto da janela, e dois pensamentos lhe ocorreram repentinamente naquele instante:
O
primeiro, enquanto seus olhos acompanhavam com atenção as minúsculas asas do pássaro
azul (naquele frenesi louco, indo e voltando ininterruptamente), foi de que o
professor na TV se enganara a respeito de um detalhe acerca das pequenas aves. O especialista dissera, no documentário, que os beija-flores
eram capazes de bater as asas oitenta vezes por segundo. Bom, ou o professor se
enganara ou pelo menos aquele beija-flor ali era diferente – pensou o menino. Contou 75
batidas de asa no primeiro instante e 77 no segundo seguinte. O outro pensamento veio logo em seguida, e o fez sorrir. Percebeu de repente que não lhe parecia
mais ser tão difícil fazer o que aquele beija-flor fazia. Ficar só ali, parado
no ar.
Fim